sábado, 1 de outubro de 2016

Demétrio Magnoli: "Só o acordo de paz pode libertar a Colômbia da prisão do destino"

Folha de São Paulo

Luis Robayo/AFP
A man rides a bicycle near a sign that reads: "The people vote yes to peace" on a street in Cartagena, Colombia, on September 24, 2016. On Monday September 26, 2016 Colombian President Juan Manuel Santos and the leader of the Revolutionary Armed Forces of Colombia (FARC), Rodrigo Londoño - known by his noms de guerre Timoleon Jimenez or Timoshenko - will officially sign a peace agreement reached on August 24 to end an armed conflict that has bled the country for over half a century. / AFP PHOTO / LUIS ROBAYO ORG XMIT: LRO007
Cartaz pede voto a favor do acordo de paz em plebiscito; ao fundo, morador de Cartagena


Macondo, a cidade metafórica de Gabriel Gárcia Márquez, terminou destruída por um furacão bíblico. O motivo da catástrofe derradeira é que, incapazes de suportar as incertezas do futuro, seus habitantes condenaram-se a repetir, eterna e circularmente, o passado. Os defensores do "não" no plebiscito colombiano sobre o acordo de paz têm razões poderosas. Contudo, só o "sim" pode romper o ciclo da reiteração, libertando a Colômbia dessa prisão chamada destino.

José Miguel Vivanco, da Human Rights Watch, e o ex-presidente colombiano Álvaro Uribe brandiram o mesmo argumento contra o acordo de paz, mas por motivos simétricos (Folha, 27/9 ). Vivanco acusa-o de impedir a punição de comandantes militares e paramilitares que cometeram violações em massa de direitos humanos –mas justifica, em nome da paz, a impunidade parcial concedida aos chefes das Farc. Uribe, por sua vez, exige sentenças de prisão contra os guerrilheiras –mas cala-se sobre as culpas das Forças Armadas e das milícias.

A posição de Vivanco é incoerente, ao propor que se pesem as violações em balanças distintas, e irrealista, ao sugerir que, derrotadas no campo de batalha, as Farc sejam declaradas vitoriosas no acordo de paz. Já Uribe exercita o realismo e repercute sentimentos difundidos entre os colombianos, que hesitam em conceder salvo-conduto aos chefes de uma guerrilha degenerada, sanguinária e associada ao negócio do narcotráfico. Entretanto, seu horizonte é Macondo: a maldição dos Buendía.

As Farc não nasceram em 1993, quando a morte de Pablo Escobar propiciou a aliança dos guerrilheiros com os cartéis, nem em 1964, quando Manuel Marulanda fugiu do enclave de Marquetalia sob ataque do Exército e, com outros comunistas, criou o bloco guerrilheiro precursor. De fato, as raízes da maior guerrilha colombiana encontram-se na guerra civil conhecida como La Violencia, deflagrada em 1948 pelo assassinato do candidato presidencial Jorge Eliécer Gaitán, um reformador populista do Partido Liberal.

Marulanda, nome de guerra de Pedro Marín, filho de cafeicultores alinhados ao Partido Liberal, cresceu nos confrontos de milícias rurais da guerra civil, combatendo com seus familiares contra forças ligadas ao Partido Conservador. No "Cem Anos de Solidão", ciclos de guerras formam uma linha indiferenciada, afogando o presente em perpétuo passado. A década de La Violencia reproduziu as guerras crônicas do século 19 entre liberais e conservadores, deixando 200 mil mortos. A saga das Farc inscreve-se na paisagem de uma nação cindida, anestesiada pela rotina do conflito. Che Guevara, o comunismo e o foquismo não passaram de temperos circunstanciais: tênues influências externas sobre a Macondo dos espectros.

As Farc irromperam como resíduo de uma guerra sem fim. Durante a degeneração da guerrilha, a Colômbia modernizou-se, abriu janelas e desafiou tradições. No governo de Uribe (2002-2010), com auxílio americano, pela via do difamado Plano Colômbia, as Forças Armadas converteram-se em instituição nacional, desvencilhando-se da companhia abominável dos paramilitares. Ao mesmo tempo, emergiram novas correntes políticas, rompendo-se a antiga polaridade. Bogotá é governada pelo Partido Verde, que se tornou o segundo maior do país. O acordo de paz, fruto da ruptura do presidente Juan Manuel Santos com Uribe, a quem serviu como ministro da Defesa, reflete essa trajetória recente.

O princípio do extermínio governou a história da Colômbia. Todo o delicado edifício do acordo de paz ergue-se sobre a ideia de transformar a guerrilha em partido político, inserindo seus líderes no parlamento. Inventou-se para isso a justiça de transição, instrumento destinado a sentenciar as violações sem trancar os violadores na prisão. É que só o pluralismo pleno, radical, pode impulsionar a nação para fora de Macondo.