O próximo papa herdará uma Igreja polarizada, dividida entre a visão progressista de Francisco e o tradicionalismo que os conservadores desejam
Guardas suíços vigiam a entrada principal da Basílica de São Pedro, no dia do traslado do corpo do papa Francisco para o interior do recinto no Vaticano (23/4/2025) - Foto: Reuters/Remo Casilli
C omo católica, o papado é uma âncora sagrada, guiando 1,4 bilhão de fiéis em um mundo turbulento. A morte do papa Francisco nesta semana, aos 88 anos, após um derrame e insuficiência cardíaca, marca o fim de uma era que dividiu as opiniões dos fiéis. Aqui, presto meu respeito ao lugar de pastor líder da minha Igreja e desejo que descanse em paz. O momento é de luto, independentemente de nossos ditames políticos.A humildade e os gestos pastorais de Francisco conquistaram corações, mas seria hipocrisia não mencionar a agenda progressista que marcou o seu papado — muitas vezes distante da missão espiritual da Igreja — e que deixou milhões de conservadores pelo mundo, como eu, incomodados com a politização da fé.
Eleito em 2013 como o primeiro papa jesuíta e latino-americano,
Jorge Mario Bergoglio trouxe uma nova perspectiva ao Vaticano. Sua
decisão de evitar o Palácio Apostólico e viver na modesta Casa Santa
Marta, além de seus apelos por uma “Igreja pobre para os pobres”,
sinalizou uma ruptura com a tradição. No entanto, seu papado
rapidamente se voltou para causas seculares que pareciam
desconexas do Evangelho.
Sua encíclica de 2015, Laudato Si’, enquadrou as mudanças climáticas como uma crise moral, alinhando-se a agendas globalistas em detrimento do foco da Igreja na salvação. Suas críticas ao capitalismo — chamando-o de um sistema que “mata” os pobres — ecoaram a retórica socialista, inquietando conservadores que veem os mercados, quando éticos, como motores de oportunidade, inclusive para a saída da pobreza.
Durante a pandemia, em 2020, a imagem do papa Francisco subindo solitário as escadas da Praça de São Pedro, sob uma chuva fina, para rezar o Urbi et Orbi diante de um mundo paralisado, foi um símbolo poderoso para mostrar que a fé não poderia ser silenciada, mesmo nos tempos mais sombrios. No entanto, a contradição é chocante: os mesmos políticos de esquerda que celebravam as posições progressistas de Francisco trancaram as portas das igrejas e repreenderam os fiéis que, movidos pela devoção, buscavam orar fora de casa, sendo rotulados como ameaça. Essa duplicidade expôs a hipocrisia de aliados de Francisco, que, enquanto louvavam sua mensagem, negavam aos católicos o direito de viver a fé que ele comoventemente representou naquele dia.
A sombra da Teologia da Libertação
As inclinações progressistas de Francisco carregam a marca da Teologia da Libertação, um movimento latino-americano dos anos 1960 que mistura catolicismo com luta de classes marxista. Nascido na Argentina, Francisco foi moldado pelas convulsões sociais da região, onde padres como Gustavo Gutiérrez defendiam os pobres contra regimes opressores. Embora Francisco rejeitasse os extremos marxistas do movimento, sua ênfase na injustiça sistêmica — pedindo “mudanças estruturais” na economia global — ecoava seus tons. O foco da Teologia da Libertação na libertação material em vez da salvação espiritual desviou muitos católicos latino-americanos, transformando algumas paróquias em campos de batalha políticos em vez de santuários.
No Brasil, a Teologia da Libertação alimentou a ascensão do Partido dos Trabalhadores, entrelaçando fé com política de esquerda. Isso alienou conservadores, que viam o papel da Igreja como transcendente à ideologia. O papado de Francisco ampliou essas tensões. Seu Sínodo da Amazônia de 2019, que explorou padres casados e questões ambientais, foi criticado por tradicionalistas como o bispo Athanasius Schneider por ser um aceno à espiritualidade politizada da Teologia da Libertação. Para os conservadores, esse movimento tem sido uma força corrosiva, afastando a Igreja de sua missão eterna e semeando divisão nas igrejas da América Latina.
Nenhum erro de Francisco foi mais doloroso para os católicos brasileiros do que suas intervenções políticas. Em uma entrevista de 2023, ele chamou Dilma Rousseff, que sofreu um impeachment em 2016 por manipulação orçamentária, de “mulher de mãos limpas”. Isso chocou os conservadores, dado seu envolvimento nos escândalos de corrupção do Partido dos Trabalhadores, expostos pela Operação Lava Jato — a maior investigação anticorrupção da história do Brasil, que revelou bilhões em propinas. Da mesma forma, Francisco defendeu Luiz Inácio Lula da Silva, condenado em 2018 por suborno e lavagem de dinheiro. Sua carta de 2019 a Lula na prisão e o encontro deles no Vaticano em 2020 enquadraram Lula como vítima de lawfare, ignorando as contundentes provas de seu papel no espetacular esquema de corrupção que a Lava Jato desvendou
Para os brasileiros, a Lava Jato foi também uma cruzada moral, expondo uma rede obscena que enriqueceu elites enquanto empobrecia a nação. A defesa de Francisco a Dilma e Lula — ambos rejeitados pelos eleitores por sua corrupção — pareceu uma traição ao Brasil de bem. Seu silêncio sobre líderes conservadores como Jair Bolsonaro e Donald Trump, por exemplo, que defendem valores tradicionais e a vida desde a sua concepção, aprofundou a ferida.
Uma Igreja Dividida
Os defensores de Francisco elogiam seu alcance aos marginalizados e visitas a refugiados. No entanto, os conservadores argumentam que suas prioridades seculares — clima e endossos políticos — enfraqueceram o cerne espiritual da Igreja. Nos EUA, críticos como o arcebispo Carlo Maria Viganò o acusaram de inclinações “comunistas”, uma declaração alimentada por suas raízes latinoamericanas e retórica econômica com críticas ao capitalismo. Suas posturas ambíguas sobre a doutrina geraram resistência, com quatro cardeais emitindo uma dubia em 2016 em busca de clareza sobre Amoris Laetitia.
A abordagem de Francisco ao comunismo contemporâneo, especialmente na China, intensificou essas críticas. Desde os anos 1950, o Partido Comunista Chinês exigiu que o Vaticano aceitasse bispos nomeados pelo governo, controlando as dioceses chinesas. Como disse o papa Bento XVI, “a autoridade do papa para nomear bispos é dada à Igreja por seu fundador, Jesus Cristo. Não é propriedade do papa, nem ele pode dá-la a outros”.
A China, há muito tempo, exige que o Vaticano aceite apenas bispos nomeados pelo governo chinês e lhes dê plena autoridade para governar uma diocese chinesa. O governo comunista chinês ateu encontrou no papa Francisco um parceiro disposto a ceder às suas exigências, e Francisco pareceu não ter tido problemas em subordinar sua autoridade a um governo comunista repressivo. Desde a tomada do poder pelos comunistas, em 1949, os católicos, assim como outros grupos religiosos na China, sofrem perseguição.
Sob o punho de ferro de Mao, a China exterminou todas as religiões durante a Revolução Cultural (1966-1976). Locais de culto foram destruídos, e os religiosos, forçados a retornar à vida secular. Muitos foram perseguidos e alguns até perderam a vida.
Desde a reforma econômica da China, na década de 1980, o governo chinês tem demonstrado um nível limitado de tolerância a religiões e fiéis. Mesmo assim, o crescimento da população cristã chinesa tem sido tão impressionante quanto o crescimento econômico do país. Esse avanço notável causou profunda preocupação no governo chinês, fazendo com que o ditador Xi Jinping — que não é amigo da liberdade religiosa — deixasse claro que os grupos religiosos “devem aderir à liderança do Partido Comunista da China [PCC] e apoiar o sistema socialista e o socialismo com características chinesas”.
Em outras palavras, o governo chinês toleraria qualquer religião somente se ela colocasse o governo chinês antes de Deus — a cartilha ipsis litteris do comunismo.
João Paulo II: o guerreiro anticomunista
Quando um ciclo se fecha, é impossível evitar comparações. E o contraste entre os papados de Francisco e João Paulo II é enorme. De 1978 a 2005, João Paulo II brilhou como um modelo de liderança moral, forjado nas chamas da opressão soviética. Nascido Karol Wojtyła, em Wadowice, na Polônia, em 1920, ele enfrentou a ocupação nazista, trabalhando em uma pedreira enquanto estudava secretamente para o sacerdócio.
Após a Segunda Guerra Mundial, o comunismo imposto pelos soviéticos trouxe novos horrores: a Igreja foi suprimida, padres foram presos, e a fé foi forçada à clandestinidade. Como jovem bispo, Wojtyła testemunhou o ataque do regime à dignidade humana, da coletivização forçada à repressão do pensamento livre.
Essas experiências moldaram sua convicção inabalável de que o comunismo era uma afronta à liberdade dada por Deus. João Paulo II tornou-se um guerreiro global contra o marxismo. Sua visita à Polônia em 1979 foi um divisor de águas: dirigindo-se a milhões em Varsóvia, ele proclamou “não tenhais medo”, acendendo o movimento Solidariedade, que desafiou o controle soviético.
Seu apoio moral — por meio de discursos, ajuda clandestina e encontros com Lech Wałęsa — ajudou a derrubar o comunismo na Polônia, um dominó que enfraqueceu a União Soviética. Sua encíclica Centesimus Annus (1991) endossou mercados livres guiados pela moralidade, rejeitando tanto o capitalismo desenfreado quanto o coletivismo marxista. Para os conservadores, sua clareza foi um baluarte contra o caos ideológico do século 20.
A autoridade moral de João Paulo II ia além da política. Ele condenou o aborto como uma “cultura da morte”, defendeu o casamento tradicional e o celibato sacerdotal, oferecendo uma âncora firme para os conservadores. Seu carisma — beijando o solo de 129 nações, atraindo milhões para as Jornadas Mundiais da Juventude — o tornou um unificador.
Sua luta anticomunista era sobre liberdade universal, não ganhos partidários. Sua visita ao Brasil em 1980, mesmo sob um regime militar, focou a fé, não a política, inspirando ricos e pobres. Sua visita ao Rio de Janeiro em 1997, onde celebrou família e fé diante de 2 milhões de pessoas, permanece uma memória querida para católicos brasileiros como eu. Sua capacidade de desafiar o mundo — pedindo paz durante a guerra fria ou perdão depois de sobreviver a uma tentativa de assassinato — o tornou um papa para todas as estações. Diferentemente de Francisco, ele evitou endossar figuras divisivas, mantendo o papado como uma voz universal.
A luta de João Paulo II contra a Teologia da Libertação foi igualmente resoluta. Em 1984, ele disciplinou teólogos como o brasileiro Leonardo Boff por priorizarem a luta de classes sobre a doutrina. Sua encíclica de 1987, Sollicitudo Rei Socialis, criticou a visão materialista do marxismo, redirecionando a Igreja para soluções espirituais. Para conservadores preocupados com o legado do comunismo, João Paulo II era um papa que entendia seus perigos em primeira mão.
Olhando para o conclave
A morte de Francisco inaugura a sede vacante, com 135 cardeais se
preparando para o conclave. O próximo papa herdará uma Igreja
polarizada, dividida entre a visão progressista de Francisco e o
tradicionalismo que os conservadores desejam. Para os
conservadores, a esperança é um pontífice que restaure a clareza
doutrinária e evite envolvimentos políticos, como fez João Paulo II.
O papado de Francisco, embora marcado por gestos de humildade, deixou um legado conturbado para os católicos conservadores. Sua agenda progressista, moldada pela sombra da Teologia da Libertação, sua defesa de líderes brasileiros corruptos como Dilma e Lula, e sua diplomacia com a China comunista alienaram aqueles que buscavam um pastor espiritual.
No Brasil, onde a Lava Jato expôs a corrupção sistêmica, sua parcialidade afastou fiéis de sua palavra de líder da Igreja. João Paulo II, temperado pelos horrores do comunismo soviético, mostrou como um papa poderia lutar por liberdade e fé sem dividir. Como católica, oro para que o próximo pontífice recapture essa visão, conduzindo a Igreja de volta à sua missão eterna, não a cruzadas terrenas.
Ana Paula Henkel - Revista Oeste