sexta-feira, 25 de abril de 2025

'Compromisso com a desonra', por J.R. Guzzo

A sessão do STF que tornou réus os seis supostos membros do suposto 'Núcleo Dois' do suposto 'golpe' é algo que nem as piores ditaduras brasileiras tiveram estômago para colocar em prática





Primeira Turma do STF julga denúncia sobre o 'Núcleo Dois' da PET nº 12.100 - Foto: Rosinei Coutinho/STF

Se você está chocado com o que o STF acaba de fazer, mandando para julgamento mais seis acusados do seu “Golpe dos Estilingues”, saiba que há todas as razões para sua indignação. O que o brasileiro está vendo, quando tem algum tempo ou interesse para prestar atenção nesse tipo de coisa, é algo a que normalmente só se consegue assistir uma vez na vida: pura e simplesmente, a condenação dos réus antes do julgamento. É a vergonha mais destrutiva que a Justiça deste país já viu em toda a sua história. 

O que Alexandre de Moraes e seus parceiros de STF estão fazendo é algo privativo dos sistemas judiciais da Coreia do Norte, Cuba ou coisas que o valham. Mais precisamente, são nossos “Processos de Moscou” — algo que nem as piores ditaduras brasileiras, de 1500 para cá, tiveram estômago para fazer. É até mais grosseiro, pensando bem. Nos processos da velha Rússia comunista, a ditadura não perdia seu tempo com fingimento. “Não precisamos ter a razão”, diziam, “porque temos a força”. Aqui o STF diz: “Nós temos só a força, mas exigimos ter também a razão”. Dá nessa farsa que está aí. 

No mais, é a mesma miséria que se vê na Justiça de qualquer ditadura. Qual é a diferença? Lá como cá, segue-se a regra básica do falso Judiciário — fazem a lista dos culpados, escolhem a pena de cada um e depois montam um tribunal com cenário de Projac, com juiz, promotor e até advogado de defesa, mais uma imprensa tipo Pravda que trata essa contrafação toda como se fosse um julgamento de verdade. Não criaram a pena de morte para os réus, como havia na Rússia de Stalin. Mas passar 17 anos na Papuda, ou o resto da vida, pode ser até pior que qualquer campo de concentração na Sibéria. 


Jornais da URSS publicados na década de 1970 (Pravda, Leninskoye Znamya, entre outros) | Foto: Shutterstock

É a situação de desgraça a que a Justiça brasileira foi reduzida pelo STF, com a agravante da hipocrisia. Nos processos de Moscou dos anos 1930 ou da Coreia do Norte de hoje, pelo menos, os juízes ficavam na sombra. Aqui os ministros fazem questão de se exibir em público como carrascos. Alexandre de Moraes e Flávio Dino debocham abertamente dos acusados, fazendo piadinhas com a morte do papa Francisco. Humilham os advogados, e violam o pleno direito de defesa. Fazem questão de esfregar na cara do público que no STF não adianta falar em lei, porque “quem manda nisto aqui é a gente”. Moraes e Dino, mais até que os outros, divertem-se na frente dos réus com exibições de sadismo. 

Tem sido assim desde o primeiro minuto do “Golpe dos Estilingues”, mas a sessão que transformou em réus os seis acusados de comporem o “Núcleo Dois” parece ter sido desenhada, de propósito, para dar um recado: “Olhem aqui, nossas intenções são as piores, e ninguém pode fazer nada”. De fato, não houve rigorosamente nada de certo em nada do que Moraes e Dino fizeram nessa última decisão. (Os três outros ministros da câmara que está cuidando do caso valem zero elevado à potência zero, mesmo porque um deles era o advogado pessoal de Lula até ganhar a sua cadeira no STF.) 

O prefácio já foi um horror. Moraes se recusou a intimar as testemunhas de defesa; nada do que dissessem iria valer nada para os julgadores, claro, mas nem as aparências foram mantidas. Os celulares dos advogados, e de quem mais compareceu à sessão, foram apreendidos, lacrados e só devolvidos no fim dos trabalhos. Foi outro surto de “aqui quem manda sou eu”. Moraes cismou que alguém iria gravar vídeos da sessão — mas a sessão era pública, e estava sendo exibida na TV do STF. Foi proibido, para todo mundo, gravar imagens dos acusados, antes, durante ou depois do julgamento. 

O ministro alegou que essas imagens poderiam ser exibidas nas redes sociais para espalhar fake news. Mas como ele poderia saber que as news seriam fake se ainda não tinham sido divulgadas? E se fossem verdadeiras? Também seria proibido, previamente? Moraes acusou quem discorda de suas decisões de pertencer a “milícias digitais” — um insulto para as dezenas de advogados, com a melhor reputação profissional, que têm criticado os desvios do STF — incluindo-se aí, presumivelmente, a OAB. Dino chamou os críticos de “juristas da internet”. 




É como se ninguém mais pudesse fazer comentários sobre qualquer coisa decidida na Justiça brasileira — um direito tão líquido, e bem mais certo que os direitos de Dino para assinar sentenças. Moraes decidiu também que ele pode — sim, senhor — ser juiz de uma causa em que ele próprio é vítima, com o espetacular argumento de que a vítima não é ele, Moraes, e sim o “Estado Democrático de Direito”. Não é vítima? Como assim, se a denúncia da PGR, que foi aceita pelo mesmo STF, diz que ele iria ser assassinado pelos “golpistas”? 

Se o prefácio foi ruim, imagine-se então o pré-difícil. A verdade, que é óbvia desde que tiveram a ideia de transformar em golpe armado o quebra-quebra do dia 8 de janeiro de 2023, ficou ainda mais óbvia com a decisão tomada contra os seis réus do “Núcleo Dois”. O começo, o meio e o fim desse problema todo é que até hoje Moraes, o STF, o governo Lula e a mídia não conseguiram apresentar a mais mísera prova da culpa de ninguém, a começar pelos que já estão cumprindo pena de 17 anos de cadeia por “golpe armado” e, ao mesmo tempo, “abolição violenta do Estado de Direito”. 

Não conseguem apresentar nenhuma prova do golpe por uma razão imbatível: não houve golpe. O regime se condenou, a partir da decisão de que a baderna de 8 de janeiro foi uma “insurreição”, a fabricar provas de um crime inexistente. A dificuldade é que não conseguiram fazer aquilo que queriam — como acusam os “golpistas” de só não terem dado o “golpe” porque não tiveram competência para dar. Talvez Moraes e a PF até conseguissem emplacar melhor a fraude do golpe se tivessem alguma habilidade no métier, mas o fato é que não têm — e acabaram por se meter nessa palhaçada que está aí.


Primeira Turma do STF julga denúncia sobre o ‘Núcleo Dois’ da PET nº 12.100 | Foto: Antonio Augusto/STF 

O erro fatal de Moraes e da PF — que na prática vai ser fatal para as suas vítimas, e não para eles — foi jogar todas as fichas na célebre “delação premiada” do coronel Cid. O problema da delação do coronel, até agora, é que o coronel não delatou nada — ou, pelo menos, nada que possa ser remotamente considerado prova num processo sério. Nem a PF ou Moraes ficaram satisfeitos com a pescaria de provas no pesqueiro de Cid — muito lambari, mas peixe mesmo, que é bom, nada. Ficaram meses esperando alguma coisa, mas a certa altura parecem ter perdido a paciência. Se não tem tu, vai tu mesmo — e eles foram, dizendo que o coronel tinha feito revelações definitivas sobre o golpe e sobre a culpa de Jair Bolsonaro. 

A partir daí nada deu certo, e nem poderia dar. O regime fundamentou todo o seu caso na delação de Cid (foi daí que tiraram 100% das suas provas “robustas”, como diz a mídia), e a delação de Cid não serve de alicerce nem para uma casinha de boneca. O delator já mudou sua delação uma meia dúzia de vezes. Disse que tudo o que está no relatório foi a polícia que escreveu, e ele só assinou. O próprio Moraes já anulou o depoimento dele — e o mandou de volta para a cadeia, de onde tinha saído após a delação, até que viesse com alguma coisa mais satisfatória. 

Ameaçou publicamente o coronel, seu pai, sua mulher e sua filha — ou assinava o que deveria assinar, ou todos iriam sofrer as “consequências”. Que valor como prova pode ter uma salada dessas? O que se tem, ao fim e ao cabo, é o seguinte, e nem um átomo a mais: de um lado, Moraes, a PGR e a polícia têm o que o coronel falou para eles, e de outro há a palavra dos acusados negando as afirmações do coronel. Dá um zero a zero, na melhor hipótese — ou seja, ignorando o vai não vai do delator. “A”, segundo a polícia, diz que “B” fez. “B” diz que não fez. “A” não tem mais do que as suas próprias afirmações; ele não pode comprovar materialmente nada do que disse. Há umas declarações dos comandantes militares que serviram no governo Bolsonaro — mas são apenas ruídos de coelhos assustados querendo salvar o próprio couro.


Filipe Martins, ex-assessor do ex-presidente Jair Bolsonaro | Foto: Montagem Revista Oeste/Divulgação/STF/SCO 

A penúria de provas ficou exposta como uma ferida na testa durante a sessão que tornou réus os seis supostos membros do suposto “Núcleo Dois” do suposto “golpe”. Não existe, logo de cara, o “Núcleo Dois”. Isso é criação da polícia, para organizar melhor as hipóteses das 900 páginas do seu relatório; seriam seis núcleos ao todo. Não há nenhuma prova de que um dos réus mais abertamente odiados por Moraes, o ex-assessor presidencial Filipe Martins, tenha algo a ver com a imputação que lhe é feita — ser o responsável pela “minuta do golpe” na qual os jornalistas acreditam como se acredita no Tratado de Versalhes. Não há provas, aliás, do que diz essa minuta; até agora a defesa não teve acesso a ela. Não há prova nem de que seja um plano de golpe. 

O que se diz é que a “minuta do golpe” é um papel não assinado com considerações sobre a possibilidade de se pedir ao Congresso a decretação de um estado de sítio ou coisa parecida. Não há provas de que o ex-diretor da Polícia Rodoviária tenha tentado impedir eleitores lulistas de votarem na eleição de 2022 — se fosse verdade, por que a PF não apresentou até agora nenhum eleitor de Lula que foi impedido de votar nele pela Rodoviária de Bolsonaro? Não há prova nenhuma, nem próxima nem distante, de que o general Mario Fernandes tenha comandado a “Operação Punhal VerdeAmarelo”, que iria matar Lula, Alckmin e o próprio Moraes.

Não há, em suma, prova de que os seis acusados tenham feito qualquer das coisas que a PGR e a PF dizem que eles fizeram, e essas provas não vão aparecer nunca. Há as coisas que o coronel Cid diz — e só. Pior do que tudo, talvez, é a hostilidade cada vez mais aberta de Moraes, Dino e os outros contra os acusados — só falta dizer em público quantos anos de cadeia já resolveram socar em cada um, porque culpados eles já são, e condenados já foram. Como será possível alguém acreditar, fora do PT, da USP e da mídia, que as sentenças serão imparciais? Ou, vendo a questão por outro prisma: como é possível, do ponto de vista técnico e jurídico, que nenhuma, absolutamente nenhuma, das dezenas de razões que os advogados de defesa apresentaram foi aceita até agora pelos juízes?

Os advogados não podem ser débeis mentais — não os advogados de seis réus diferentes, o tempo todo e em 100% de tudo o que dizem. Não faz nexo nenhum, como não faz nexo que sejam tratados, no plenário do STF e na imprensa, como “bolsonaristas” que estão querendo “impunidade” para os “golpistas” e o “fim da democracia”, quando estão apenas trabalhando por seus clientes, direito garantido pela Constituição Federal. O que querem: advogados como os que do tribunal? 

Se já está desse jeito agora, imagine então como estará na hora do julgamento mesmo, com Bolsonaro na cadeira do réu-mor, Moraes, Dino e os demais ainda mais excitados do que estão hoje e o STF tendo de dizer que a palavra do coronel Cid tem valor de prova absoluta contra todos os réus, mesmo sem nenhuma evidência física de que aquilo que ele diz é verdade? Vão ter de fazer isso na frente do mundo inteiro. Se já ficaram tão fora de si com o que acabam de ler numa simples matéria da revista The Economist, como estarão na hora das sentenças finais? 

Podem até absolver, numa tentativa de salvar alguma aparência, alguém da arraia-miúda, como vêm condenando os proletários do dia 8 de janeiro — até agora, só foram punidos os pobres coitados que não podem se defender. Mas os ministros condenaram a si próprios a condenar os peixes gordos, e a cada dia vai ficar mais evidente que estão agindo, na prática, como os piores tribunais-bandidos de ditadura subdesenvolvida. O fato é que o STF, o governo Lula e seu sistema de apoio assinaram um contrato com a desonra. Agora vão ter de cumprir.


Advogado Sebastião Coelho da Silva, durante julgamento da denúncia sobre o ‘Núcleo Dois’ da PET nº 12.100 | Foto: Antonio Augusto/STF

J.R. Guzzo - Revista Oeste