“Quem silencia e abaixa a cabeça, morre cada vez que faz isso; quem fala e anda com a cabeça erguida, morre uma vez só”.
Giovanni Falcone morreu uma vez só e o estrondo é ouvido até hoje. Não apenas dos 400 quilos de TNT enterrados debaixo do asfalto da estrada para o aeroporto de Palermo – uma carga tão violenta que foi registrada no sismógrafo do Instituto de Geofísica e Vulcanologia das imediações, faltando menos de quatro minutos para a seis horas da tarde de 23 de maio de 1992.
Como o mais conhecido dos muitos “cadaveri eccelenti”, ou cadáveres ilustres, como os mafiosos chamavam suas vítimas famosas, o barulho deixado por Falconi foi mencionado em diversas ocasiões por Sergio Moro, a última delas referindo-se ao processo de decisão de deixar a magistratura – e a Lava Jato –para ser ministro da Justiça.
E 2015, disse Moro: “Nos momentos de dificuldade, leio livros sobre Giovanni Falcone e vejo que os casos nos quais ele atuava eram muito mais profundos do que o meu”.
Falcone estabeleceu parâmetros de investigação que hoje parecem ter existido desde sempre: seguir o caminho do dinheiro, interligar as operações criminosas, estabelecer o domínio dos fatos e implantar um sistema de delação premiada que conseguiu, pela primeira vez, quebrar a lei do silêncio, um pacto que remonta à idade média e era garantido com o sangue da família inteira dos que aderiam a ele.
O mais famoso colaborador, o que abriu os portões, tinha um nome impronunciável publicamente no Brasil: Tommaso Buscetta. Rompido com os chefões sicilianos, ele tinha “operado” nos Estados Unidos e no Brasil. Falcone veio negociar pessoalmente a extradição dele.
Reza a lenda que o juiz italiano perguntou por que ele tinha acabado preso em São Paulo e Buscetta respondeu:
“Doutor, no Brasil nem a máfia funciona”.
“Doutor, no Brasil nem a máfia funciona”.
Foram as informações de Don Masino, como era chamado, que permitiram estabelecer, judicialmente, a responsabilidade dos chefões, os homens da Cúpula – tudo é em maiúsculas quando envolve a Cosa Nostra – pelos crimes nos quais, evidentemente, não sujavam as mãos.
“BEIJO DE HONRA”
Os paralelos com os casos de corrupção no Brasil são evidentes. Na Itália, quase concomitantemente ao máxi-processo, envolvendo os mafiosos de Palermo, ocorreu a operação Mãos Limpas.
O juiz mais conhecido da Mãos Limpas foi Antonio di Pietro. O alcance foi tal que mais da metade dos parlamentares tinham sido indiciados. Ao todo, o caso envolveu mais de 5 000 pessoas, entre políticos, empresários e funcionários públicos.
Os processos conduzidos por Giovanni Falcone acabaram, inevitavelmente, envolvendo políticos. Como funcionaria a Cosa Nostra sem as melhores conexões que o dinheiro pode comprar?
Giulio Andreotti, o patriarca da política italiana, chegou a ser acusado de ter trocado o “beijo de honra” com Totò Riina, o chefão dos chefões, segundo testemunho do próprio motorista do mafioso.
O processo na justiça deu em nada, com a conclusão que as relações de cooperação haviam sido rompidas desde o assassinato, em 1980, do ilustríssimo cadáver Piersanti Mattarella, líder democrata-cristão que denunciava os acordos espúrios com os mafiosos (o atual presidente italiano, Sergio Mattarella, é irmão dele).
Riina deu a ordem de matar Giovanni Falcone. A ascensão do chefão de Corleone – exatamente a mesma cidadezinha do livro de Mario Puzzo e da série de filmes de Francis Coppola – e a brutalidade de seus métodos correspondem mais ou menos às de Pablo Escobar e da explosão de consumo de cocaína.
O chefão estava preso, depois de passar 23 anos “foragido” – na sua casa em Palermo, com a mulher e os quatro filhos, debaixo do nariz das autoridades que fingiam nada ver.
O executor, ou killer, como dizem os italianos, foi Giovanni Brusca. Quando foi preso, quatro anos depois do assassinato de Falcone, exibia na ficha “entre 100 e 200” mortes – tinha perdido a conta.
Conhecido como Porco, ele havia rompido hediondamente a tradição mafiosa de não matar mulheres e crianças. Sequestrou o filho de onze anos de um dos “arrependidos” e manteve o menino em diversos cárceres durante meses, mandando fotos ao pai da criança torturada. Depois, mandou estrangular e dissolver o corpo do menino num barril de soda cáustica.
A prisão de Brusca foi comemorada por policiais de Palermo que chegaram a chorar de alegria, arrancando do rosto as balaclavas usadas para a própria proteção.
Já podiam andar de cabeça erguida, como aconselhava Falcone.
BELLA FIGURA
Dos principais envolvidos, Brusca é o único que continua vivo, com a colaboração premiada e o bom comportamento recompensados por saídas para visitar a família.
Totò Riina morreu no ano passado, aos 87 anos, na cadeia onde estava desde 1983. Tommaso Buscetta entrou num programa de proteção a testemunhas nos Estados Unidos, com nova identidade e novo rosto, com outra operação plástica. Morreu lá, de câncer de pulmão, no ano 2000.
Sobreviveu a mais de 20 parentes mortos nas guerras internas da Cosa Nostra. E, obviamente, a Falcone, a quem conheceu quando estava preso no Brasil e avisou: “Primeiro, eles vão tentar me pegar. Depois, vai ser você.”
No primeiro encontro com o juiz, Don Masino vestia blazer branco com abotoamento duplo, calça preta, camisa azul marinho e gravata. Queria, evidentemente, fazer uma “bella figura”, como dizem os italianos. Manter as aparências.
Mais de 300 mafiosos foram presos e condenados devido ao tsunami de confissões iniciado por ele e ao trabalho pioneiro de Giovanni Falcone.
Como Pablo Escobar, Totò Riina chegou a ameaçar as estruturas do Estado italiano, com atentados a bomba que imitavam os métodos dos grupos de extrema-esquerda e extrema-direita. Mirava no coração da identidade italiana: igrejas e ambientes de exibição de arte.
Falcone morreu ao lado da mulher, Francesca Morvillo. Ele próprio dirigia o Fiat Croma branco. Morreram também três seguranças. Os carros retorcidos acabaram virando peças de museu contra a infâmia.
Menos de dois meses depois, um carro-bomba explodiu na frente da casa de Paolo Borsellino, colega de Falcone que denunciava elos entre mafiosos e políticos. Morreram o juiz e cinco policiais.
Os assassinatos propiciaram o regime de incomunicabilidade chamado 14BIS, uma referência ao artigo do regimento carcerário que o propiciou. O poder da máfia siciliana diminuiu consideravelmente, mas é claro que não desapareceu. Muitos especialistas consideram que a máfia napolitana ocupou os espaços vazios.
Mas mandar matar Falcone não foi definitivamente uma boa ideia para a cúpula da Cosa Nostra. E provou, mais uma vez, que criminosos considerados intocáveis prejudicam seus próprios interesses, embriagados pela ideia de que podem tudo.
Até encontrarem um falcão pela frente.
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