Há quatro anos, quando estávamos prestes a ingressar em 2015, o observador médio da economia argentina, se recebesse a informação vinda do futuro de que Mauricio Macri seria eleito no pleito daquele ano, teria feito o diagnóstico de que o futuro presidente provavelmente tentaria implementar um programa econômico ortodoxo, mas enfrentaria dificuldades no terreno da política. Em outras palavras, a perspectiva seria de uma economia melhorando, mas com a política agitada. O que aconteceu, anos depois?
No começo do seu governo Macri fez a leitura de que a fragilidade com a qual assumiu o cargo - em minoria parlamentar, com os sindicatos contrários e Cristina Kirchner ainda com elevada popularidade - dificultava a adoção de um programa econômico muito severo. Assim, a ortodoxia ficou circunscrita à busca da “verdade tarifária”, depois de anos de benesses do governo kirchnerista, que tinha deixado todas as esferas sujeitas a concessões públicas - com destaque para os setores de energia elétrica e gás - à beira do colapso.
Nesse campo, sim, houve um ajuste de alguma forma comparável - porém mais intenso - ao que no Brasil tivemos em 2015 quando Joaquim Levy, ainda no governo Dilma Rousseff, começou a corrigir o descalabro setorial cometido em 2012 no setor de energia. Assim, já no começo de 2016 os argentinos começaram a receber contas de luz e gás sensivelmente mais caras, o que afetou negativamente a popularidade do novo governo.
Talvez pela percepção de que Macri não podia dar-se ao luxo de lutar em várias frentes ao mesmo tempo, as autoridades argentinas escolheram não encarar pra valer a batalha contra dois inimigos tradicionais da ortodoxia: o déficit público e a inflação. Em ambos os casos, a opção pelo gradualismo se deu sob a justificativa de que a sociedade não toleraria um enfrentamento “selvagem” desses problemas.
No campo fiscal, isso levou a uma política que, com exceção da redução dos subsídios, pouco diferia das políticas de tantos governos latino-americanos. Não fosse Macri da origem ideológica da qual provém, qualquer observador isento não hesitaria em qualificar sua política fiscal de “populista”. Isso levou a que, em 2016, o déficit público fosse da ordem de grandeza do brasileiro, sem que tivessem sido tomadas medidas corretivas de fundo para controlar a sua evolução. A ideia era seguir o que se poderia definir como “estratégia Clinton”, que nos seus anos de governo teve um desempenho fiscal muito positivo, controlando a despesa e se beneficiando do aumento da receita propiciado pelo desempenho da economia. Isso, porém, demanda tempo e sorte. O primeiro, para que anos de incremento da receita se encarreguem de reduzir o desequilíbrio. O segundo, para que no meio do caminho não surjam imprevistos que dinamitem a estratégia. Detalhe importante: o déficit primário médio de 2016-2017, com Macri, foi maior que o de 2015, com Cristina Kirchner. Numa empresa, esse tipo de conduta se chama “gestão temerária”.
No caso da inflação, esta foi vítima da decisão de Macri de dividir a equipe, fragmentando as pastas ministeriais e evitando o surgimento da figura de um “superministro” - um erro grave. Nesse contexto, surgiu a figura de Federico Sturzenegger, o presidente do Banco Central, visto como o símbolo do combate à inflação. Assim, durante 2016 e, especialmente, 2017, ele resistiu às pressões para adotar uma política monetária mais branda, como forma de estimular a economia. Foi assim até que em dezembro de 2017, numa desastrosa entrevista à imprensa, com cara de que tinha engolido um tijolo e ladeado pelo equivalente de chefe da Casa Civil argentino, ele anunciou a mudança da meta de inflação para 2018 para criar as condições para uma política monetária mais relaxada. O que se seguiu foi um case de livro-texto de economia, com o governo autoimpedido de elevar os juros, expectativas de inflação em aumento e um comportamento dos preços muito pior que o previsto. Assim, a inflação em 12 meses, de 25% em 2017, começou a subir e, num contexto de diversos erros operacionais que não há espaço aqui para explicar, alcançou 31% em julho, muito acima da meta oficial do ano definida em dezembro, de 15% e na qual desde o início ninguém acreditou. Nos 12 meses até setembro, escalou a 41%. Assim, o regime de metas de inflação ardeu em praça pública - e o país teve de recorrer ao FMI.
Favorecido pelo protagonismo de Cristina - o melhor e o pior candidato possível que o peronismo pode exibir -, cujos índices de aprovação e rejeição eram ambos muito elevados, Macri conseguiu negociar durante dois anos, fiel ao princípio de “dividir para reinar”. Hoje, o peronismo tem cinco vértices diferentes: 1) Cristina, que se for candidata tende a consagrar Macri, pela sua rejeição; 2) Sergio Massa, peronista dissidente que saiu terceiro nas eleições de 2015, mas tem grandes dificuldades para ser apoiado fora da estrutura do peronismo; 3) os congressistas “dialoguistas”, fortes no Parlamento mas sem expressão nacional; 4) o sindicalismo, que preserva parte da sua força, mas desmoralizado politicamente; e 5) os governadores, de bom diálogo com o Macri, mas que procuram formas de se diferenciar de um governo visto como tóxico, o que complica as negociações.
Numa célebre passagem, na sua crítica ao primeiro-ministro Chamberlain acerca de sua timidez diante da Alemanha, Churchill disse que “França e Inglaterra tiveram a oportunidade de escolher entre a indignidade e a guerra. Escolheram a indignidade. Terão a guerra”. Macri, qual Chamberlain, quis evitar a “guerra” de um ajuste maior em 2016 - e agora tem de fazer o ajuste, sem anestesia e a caminho das eleições. Nesse contexto, sua reeleição se tornou mais incerta - embora, por falta de adversários, continue representando o cenário principal.
FABIO GIAMBIAGI É ECONOMISTA
O Estado de São Paulo