O Estado de S.Paulo
“Carlos Drummond de Andrade era formal, seco, distante, dava a ponta dos dedos, quando instado a um cumprimento, e logo fechava a cara para evitar abordagens do possível interlocutor. Essa frieza chegou a espantar Graciliano Ramos, que foi sertanejo desconfiado, mais espinhento que um cacto. “Um osso”, dele disse Graciliano, referindo-se, naturalmente, não apenas à secura de carnes, mas à secura de gestos.”
Vocês podem pensar que esta é mais uma descoberta de Humberto Werneck que há anos pesquisa a literatura mineira. Não, não é de Werneck e sim de Hélio Pólvora, escritor baiano, cronista, contista romancista, crítico e tradutor, que morreu em 2015, aos 86 anos. Eu costumava ler Pólvora no Jornal do Brasil, certa época. Ele tinha o mesmo sabor e humor de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga e João Ubaldo Ribeiro.
Eis (sempre quis começar uma frase assim) que uma editora da Bahia traz Hélio Pólvora à tona. É a Casarão do Verbo, de Anagé, mantida a ferro e fogo por Rosel Soares, em uma edição que justifica a palavra primorosa. A Casarão colocou em cena nada menos do que sete livros do Pólvora. Peguei logo Como Morrem os Nossos Escritores, atraído pelo título e pela curiosidade. Para saber se invejo certas mortes ou se fico amedrontado diante da certeza dela.
Cronistas são historiadores do cotidiano. Neles serão encontradas no futuro as informações sobre como somos hoje. Os interessados em história da literatura vão encontrar nessas páginas de Hélio Pólvora um mundo de curiosidades sobre usos, costumes e personagens célebres. Do poeta e cronista Paulo Mendes Campos sabemos sobre seus bares preferidos: o Alcazar, “de onde contemplava o mar e logo chegava ao lar”. O Juca’s Bar, o Bar do Luis, o Vermelhinho, “reduto da esquerda diurética, hoje esquerda caviar” e o Amarelinho “da direita elitista e reacionária”. Ao morrer, em 1991, Paulo Mendes Campos deixou um aviso aos abstêmios: “A velhice é uma ressaca diária. E sem cura”.
Pequena obra-prima de Pólvora é o relato do documentário que o cineasta Joaquim Pedro realizou sobre Manuel Bandeira, que “vive sozinho em sua limpa solidão”. A crônica relata os comentários que duas senhoras fazem durante o filme, analisando o poeta, cena a cena: “Ele não tem empregada doméstica... nem faxineira, vive só... É um risco na idade dele... Pobrezinho, a ferver o leite... pois se é solteirão”. A câmera mostra os livros, brochuras, capas soltas, as duas sentem compaixão: “Livro só vale a pena encadernado. Ajuda na decoração... Talvez não tenha dinheiro para encadernar”.
Bandeira abre um livro, lê. As duas: “Começa a ler bem cedo... É, parece que não trabalha... Esses poetas são boêmios”. Bandeira para de ler, olha para a câmera e diz: “Vou-me embora para Pasárgada...”. Uma das duas: “Onde fica Passárada? ... Acho que em São Paulo, ou na Bahia... Já ouvi esse nome, fica no sul de Minas”. O poeta continua a ler o poema para a câmera: “Aqui eu não sou feliz?”. Uma delas: “Por que não casou? Não fez família?”.
Esse livro delicioso do Hélio devia ser adotado em faculdades de jornalismo. Para ensinar a escrever, a fazer perfis curtos e objetivos de entrevistados, para aprender a ter humor e a definir pessoas em uma frase. Para o autor, Antonio Callado era “o único inglês da vida real”; o feroz e odiado crítico Agripino Grieco era um “obstinado garimpeiro dos erros e bobagens alheias”; Rubem Braga foi “um esperançado que não tardou a se desiludir”; Jorge Amado, “um animador ímpar de noites de autógrafos”, ao sugerir que mulheres célebres e bonitas fossem madrinhas dos escritores. William Faulkner, “um homem em luta com o coração humano”. Macedo Miranda, hoje um nome esquecidíssimo, mas bom escritor, era “discreto, silencioso. Na redação sentia-se que ele sobrava. Sobrava porque queria, porque lhe parecia conveniente”. Sei o que é sobrar, passei por isso.
Quando comecei em jornal, em 1957, trabalhei com Samuel Wainer, que me ensinou muito. Era um homem magro, cabelos brancos e muito charme, sedutor (casou-se com a deslumbrante Danuza e certa noite entrou na redação do Anhangabaú de braços com Kim Novak), apaixonado por jornalismo. Sorria muito e nos mantinha em estado de permanente efervescência. Com a ditadura militar, Samuel foi exilado, envelheceu, voltou ao Brasil, buscou emprego. Hélio Pólvora encontrou-se com ele em 1970, em São Paulo.
“Wainer, então enfermo e com dificuldades financeiras, depois de fulgurante período político e jornalístico, dirigia um semanário. O velho mestre parecia encolhido, como um pássaro molhado, numa cadeira. Tive a impressão de que as roupas, um tanto enxovalhadas, eram penas que uma água a escorrer tentava em vão alisar. Voz cava. A expressão de alegria lhe sumia do semblante. Ofegava. Era quase uma ruína em pé. E tossia, vítima de um enfisema pulmonar.” Samuel deu a Hélio uma carona, mergulharam no feroz trânsito paulistano. Foi quando se viram pela última vez. Ele, Samuel, “furava o tráfego com o velho ímpeto de quem cava a vida. Obstinado, com uma obstinação que martelava o peito em busca de ar”.
Samuel me ensinou a ter essa obstinação que ainda me martela. E também a definição de que ao jornalista só interessa aquilo que está oculto e cabe a ele desvendar.