O Estado de S.Paulo
Não importa mais o fato de que já ninguém consegue entender o que seja a divisão ideológica entre direita e esquerda. O que importa é que partidos, pensadores e pessoas que se dizem de esquerda estejam mergulhados em profunda confusão, já não conseguem entender o que se passa e, na falta de programas sustentáveis, permanecem patinando no vazio, sem impacto eleitoral.
Se ainda existe a divisão da sociedade em classes, entre a burguesia exploradora e o proletariado explorado, não é mais assim que elas se manifestam hoje. Nem é entre essas contradições que opera a dialética destes tempos.
O sistema de produção deixou de ser predominantemente fabril e os sindicatos estão ameaçados de esvaziamento. Já não há mais “donos” do capital e, apenas residualmente, famílias detentoras de controle acionário. Hoje pode estar distribuído por fundos de equity; amanhã, podem ter passado para uma instituição com sede num paraíso fiscal. A dinâmica do capital tornou-se predominantemente financeira, circula ao redor do mundo à velocidade da luz. A nova tecnologia, altamente digitalizada, destrói postos de trabalho e profissões. Também cria outras, sabe-se lá com que duração.
A produção de riqueza e renda também não está mais centralizada na indústria. Mais de 70% do PIB das economias avançadas, incluída aí a do Brasil, está no setor de serviços. Em todo o mundo, a execução do trabalho deixou de ser preponderantemente braçal ou física. A internet e os aplicativos vêm empurrando os assalariados para atividades autônomas, “por conta própria”, nas quais qualquer um pode ser patrão de si mesmo.
As atuais esquerdas vêm denunciando equivocadamente esse processo como um ambiente de precarização e de informalização do trabalho. Não se dão conta de que está em curso um movimento – até onde se pode ver, inexorável – em direção ao pequeno e médio empreendedorismo. Esse novo ambiente não destrói apenas os esquemas de financiamento da previdência social. Também dissolve a atividade sindical, na mesma medida em que o proletariado se empenha em ter ocupação independente.
Ao contrário do que vinham repetindo pensadores de esquerda, o sistema global não é excludente, no sentido de que alija o trabalhador do mercado de trabalho e de consumo. Aconteceu o contrário.
No mundo inteiro as classes médias crescem à proporção de 140 milhões de pessoas por ano. Na Ásia, cada vez mais os anteriormente relegados à cultura de subsistência vêm sendo incorporados ao mercado. Paradoxalmente, na medida em que são incorporados e seus produtos são distribuídos globalmente por uma fração dos preços convencionais semeiam ressentimento entre as classes médias do Ocidente, que perdem emprego e salário para esses emergentes e, lá pelas tantas, elegem um salvador.
Além de naufragar no diagnóstico e na narrativa do que hoje se passa, as esquerdas não sabem o que fazer quando chegam ao poder. Perdem-se em políticas populistas e se agarram a um distributivismo artificial. Ao mesmo tempo que se dedicam a tomar, a aparelhar as instituições do Estado, atiram-se à pilhagem do patrimônio público, nem sempre em benefício “da causa”, como tantos pretendem justificar, mas em benefício pessoal, dentro do modelo patrimonialista operado pelas elites tradicionais.
Para não ir mais longe, não foi isso que aconteceu e acontece na Venezuela sob Hugo Chávez e Nicolás Maduro? Não foi o que seu viu no Brasil, ao longo dos governos Lula e Dilma, que se notabilizaram pelos rombos fiscais, pelas pedaladas, pelo mensalão e pelo petrolão? Enquanto controlaram o governo, as esquerdas não entenderam que qualquer política social só pode ter consistência quando calcada no equilíbrio das contas públicas.
Enfim, é uma esquerda sem foco ideológico e sem agenda, incapaz até mesmo de identificar o inimigo da hora. Lutar por redução da desigualdade pode não ser mais importante do que lutar contra a pobreza e, portanto, por desenvolver o País em bases sustentáveis. Cuba é um dos países com melhor distribuição de renda, mas não sai do buraco em que está.
Virou lugar comum afirmar que é preciso reciclagem e que problemas novos exigem uma nova esquerda. Mas isso, decididamente, não se faz com denúncias “ao golpe de 2016”; não se faz com ataques verbais ao juiz Sérgio Moro e à “imprensa vendida ao capital”; não se faz com posicionamentos vazios, “contra tudo o que está aí”.
Nem há indícios de que os que estão aí estejam dispostos a reconhecer seus erros e a comparecer perante o eleitor com nova postura e nova compostura.