Com Folha de São Paulo
Anna foi o retrato da CUP, o partido “anti-sistema” Candidatura de Unidade Popular, que luta “pelos Países Catalães independentes, socialistas, ecologicamente sustentáveis, territorialmente equilibrados e desvinculados das formas de dominação patriarcais”.
No Parlamento catalão, exibia-se como revolucionária pós-moderna: cabelos curtos de corte irregular, franja reta, camisetas ornadas com slogans insurgentes. Diante da hipótese de um processo judicial decorrente de sua participação secundária na fracassada secessão da Catalunha, fugiu para Genebra –e reformou sua aparência.
A Anna do exílio voluntário, cabelos longos escorridos, roupas casuais de professora, a declarada vontade de retornar à docência, tornou-se uma perfeita senhorita suíça. As duas Annas, ou o percurso de uma a outra, ajudam a entender o que Mario Vargas Llosa batizou como a “civilização do espetáculo”.
Anna Gabriel Sabaté nasceu em 1975, ano da morte de Franco, em Sallent, povoado catalão dividido pelo rio Llobregat. Fala perfeitamente o espanhol –mas, em público, só usa o catalão. Não tem filhos –mas, se tivesse, gostaria de educá-los “em comunidade”, “numa tribo”. Tribo é a palavra-chave para entender Anna.
Seu avô e seu bisavô militaram na CNT, a central sindical anarquista que mandou em Barcelona durante uns poucos meses insurrecionais, entre 1936 e 1937. Dos velhos anarquistas, ela guardou o anticapitalismo.
Da “civilização do espetáculo”, um fruto do capitalismo tardio em sociedades ricas, extraiu o ecologismo e o feminismo. Uma companheira sua, Mireia Boya, sugeriu boicotar as eleições catalãs de dezembro, substituindo-as por uma “paella massiva, insubmissa e solidária”. Na paella ideológica de Anna, o ingrediente final é o encanto pelo romance da Revolução Cubana e pela autoritária (e machista) Venezuela chavista.
“Somos as filhas e netas das bruxas que não puderam queimar” –o brado ritual de Anna, sua marca registrada, contrasta com o percurso da CUP rumo a uma aliança com o PDeCat, o partido conservador catalão. Concluída após as eleições regionais de 2015, a aliança propiciou a maioria parlamentar de sustentação do governo separatista de Carles Puigdemont.
No processo, a CUP sacrificou a pulsão revolucionária no altar de um nacionalismo de corte étnico e aristocrático. O contraste não poderia ser maior: no discurso dos líderes nacionalistas oficiais, a Catalunha independente nascerá de uma derradeira batalha da Guerra da Sucessão Espanhola (1702-14); no de Anna, do levante de uma nação oprimida pelas engrenagens do capitalismo globalizado.
A CUP, estilhaço da esquerda pós-marxista, é constituída por duas facções em rusgas perenes, mas igualmente inspiradas pela “esquerda abertzale”, as organizações radicais bascas ligadas ao ETA. Dois anos atrás, no parlamento catalão, Anna celebrou a libertação de Arnaldo Otegi, um líder do ETA condenado por atos terroristas, acusando a Espanha de manter presos políticos. “Você não chega nem à sola do sapato de Otegi”, respondeu a um deputado indignado com a comemoração.
Anna milita na facção Endavant, cujas raízes encontram-se nos movimentos de ocupação de moradias (okupa) da década de 1990. No fim de fevereiro, concedeu entrevista em Genebra explicando que escolheu: “Um país onde meus direitos fundamentais são garantidos” –isto é, a próspera Suíça que lava mais branco.
Depois, posou diante do lago para o fotógrafo francês Laurent Guiraud, cabelos soltos, jeans da Diesel e, sinal remanescente de rebeldia, os antigos piercings de orelha. Andrea Vilallonga, especialista em imagem, explicou que seu novo look cumpre a função de dissolver a marca cultural da militante implacável.
Sem o conceito de “civilização do espetáculo”, não se entende a política contemporânea de ultraesquerda. Anna, a catalã, está entre nós.