José Nêumanne, O Estado de São Paulo
Há um preconceito contra a autoridade policial que diminui radicalmente a segurança dos cidadãos e facilita a atividade dos fora da lei. Sem o exercício adequado do monopólio da força pelo Estado de Direito, o chamado “regime do povo, pelo povo e para o povo” simplesmente não tem como funcionar. Ao contrário do que imaginam os bem-pensantes da esquerda, que se fingem de defensores de direitos humanos de forma indiscriminada, e os trogloditas da direita arbitrária, a velha democracia burguesa não cumpre o que se propõe a fazer se os inimigos do império da lei trilham o caminho de volta à barbárie do tempo dos dinossauros. Dispomos aqui de exemplos desse axioma em nosso cotidiano.
O mais antigo deles é a intervenção militar, dita federal, na Segurança do Estado mais convulsionado do País em matéria de violência, o do Rio de Janeiro. Decretada em 16 de fevereiro e prometida para terminar no último dia deste ano, ela ainda não disse a que veio, mas continua tendo o apoio da população, principalmente lá, porque não há boas novas correspondentes a que se destinava. Mas, como o povo diz, faz tempo, a esperança é a última que morre e desistir de esperar é quase deixar de viver. Há mais chacinas, as estatísticas dos crimes não cedem, mas a realidade dessa tragédia se impõe sobre a própria capacidade de crítica e indignação da cidadania. A intervenção é executada pelo Exército e quando não der mais para confiar nas Forças Armadas, que estão quietinhas em seus quartéis, o ânimo da coletividade cairá a níveis árticos.
Lamento, contudo, alertar que as notícias são péssimas. No sábado passado, o colunista Ancelmo Gois, de O Globo, publicou uma nota aparentemente singela, quase uma fofoca, mas com as consequências de uma dinamite de pavio curto: “O que mais chamou a atenção no evento, ontem, no plenário do TRF do Rio, foi um comentário do general Braga Netto, interventor no Rio. Diante de militares, procuradores e desembargadores, ele contou que, passados 60 dias do início da intervenção, o governo não liberou nenhum centavo para as ações. Nem mesmo os cargos de confiança para montar a equipe foram criados”. O título é “Cadê a grana?”. Acontece que a fonte da notícia disse publicamente que sua missão custaria, no mínimo, R$ 6 bilhões e o comandante dele e chefe do aparato estatal todo, o presidente Michel Temer, anunciou que mandaria R$ 3 bilhões para despesas urgentes, como armar os agentes da lei, renovar sua frota, remunerar pessoal e financiar operações sem as quais tudo não passará do velho hábito de enxugar gelo, em que a polícia prende e a Justiça solta. E, pelo visto, está tudo como dantes no quartel de Abrantes. Literalmente.
Se a fonte do colega não mentiu ou exagerou, é o caso de questionar outros anúncios de aporte de dinheiro que têm sido feitos ultimamente. Com a “precisão” que lhe é habitual, o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, o Kid Ligeirinho, garantiu que haverá recursos vultosos em sua área necessitada. Não informou quando. Não disse quanto. E depois da queixa do encarregado da intervenção não dá para confiar que o anúncio se traduza em dinheiro vivo. O Estado deve, nega e quem cobrar vá se catar!
A intervenção meia-boca no Rio tem dois grandes feitos, ambos negativos. O primeiro é a não identificação de executantes e mandantes da execução da vereadora Marielle Franco, do PSOL, e do motorista Anderson Gomes, em 14 de março. Correligionários, amigos e familiares da vítima têm ouvido várias explicações da polícia e saem das reuniões com muita fé e poucas informações. O certo é que os meios de comunicação têm descoberto preocupantes casos de testemunhas oculares do crime que nunca foram ouvidas pelas autoridades que o investigam. É muito estranho… Não interessa se a vereadora é política e militante de direitos humanos. Importa é que a polícia do Rio tem feito por merecer sua fama de incompetente, desastrada, brutal e muitas vezes cúmplice de crimes. Até agora a presença do alto oficialato no comando da segurança do Rio em nada contribuiu para confirmar ou negar essa imagem nem para colher resultados da excelência investigativa prometida pelos profetas de plantão.
A polícia do Paraná também tem dado uma enorme contribuição para a disseminação da violência e da insegurança, com sua incapacidade de resolver crimes corriqueiros. Em 14 de março, três tiros perfuraram a fuselagem de dois ônibus que faziam parte da caravana do pretenso presidenciável Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, em Francisco Beltrão, na estrada entre Quedas do Iguaçu e Laranjeiras do Sul, no interior daquele Estado, à época do atentado governado por um tucano no mínimo trapalhão e no máximo suspeito chamado Beto Richa. Este saiu do governo e disputa o Senado, Lula foi preso e saiu de circulação e a autoridade policial divulga um truísmo atrás do outro, baseando-se em perícias técnicas e sem nenhuma informação que a aproxime de autores e mandantes do atentado.
No sábado passado, 28 de abril, portanto, um mês e um dia depois do episódio dos ônibus, um atirador, cuja imagem foi registrada por uma câmera e transmitida pelas emissoras de televisão, disparou contra um acampamento de lulistas em Curitiba, ferindo duas pessoas, uma perfurada e a outra, arranhada. A governadora é Cida Borghetti, casada com o ex-ministro da Saúde de Temer Ricardo Barros e que milita no Progressistas. Sob sua égide, a polícia paranaense nada tem a revelar, embora não pareça necessário convocar Eliot Ness numa sessão espírita para resolver tal caso.
A cada dia que passa sem novidades cresce a onda de versões sobre esses fatos em torno de Lula. A direita possessa atribui a tentativa de assassinato e os tiros nos ônibus aos petistas interessados em criar mártires. A esquerda estúpida aponta para a direita bruta, agora sob o comando de um militar da reserva, o oficial e deputado Jair Bolsonaro. Isso não ajuda a elucidar o crime nem a evitar que a democracia sofra danos irreparáveis.
Quanto à intervenção, pelo menos uma boa notícia foi produzida recentemente. A Justiça tomou juízo e soltou 138 de 159 presos num baile presumivelmente promovido por milicianos em Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio. Temer não se dignou a falar sobre essa absurda violação do direito ao lazer de cidadãos pobres, e não quero nem imaginar o barulho que seria feito se o baile fosse interrompido no Copacabana Palace. Jungmann apareceu para inverter de vez o “em dúvida a favor do réu” por “quem quiser ir para casa tem que provar que não é bandido”. Truculentos, espero que desarmados, nas redes sociais chegaram a garantir que nos EUA não existe presunção de inocência, mas acusação de culpabilidade.
É claro que diante de tais asneiras a democracia se curva e, sendo cidadã de bem, vomita a mais não poder. Até quando o Estado incompetente e sua polícia destreinada, mal armada, corrupta e apavorada causarão tantos ferimentos ao Estado de Direito, que a Nação quer e cobra?
- Jornalista, poeta e escritor