Nosso problema corrente e premente é como desfazer resíduos de nobreza embutidos em toda parte, mas imoral e desconfortavelmente visíveis nos cargos públicos
Os jornais estampam a última “novidade” deste Brasil feito por nós, mas que tende a ser visto como um ilustre desconhecido. Pois somos muito mais predispostos a nos ver como criadores do que como criaturas. Acreditamos criar relações que produzem grupos, os quais, por sua vez, inventam regras, mas — eis a novidade das “crises” — descobrimos como temos que prestar contas do que escolhemos e inventamos.
No momento, a grande novidade é descobrir que sem fazer valer a lei a torto e a direito (sem trocadilho), o Brasil vai às brecas. Nosso problema corrente e premente é como desfazer os resíduos de nobreza embutidos em toda parte, mas imoral e desconfortavelmente visíveis nos cargos públicos de alto coturno.
Você não queria democracia? — agora chia... Nós nos perguntávamos quando veio o golpe militar para — diziam — democratizar o Brasil e vimos o passageiro se transformar em permanente, o democrático em ditadura e o governo provisório num regime. Proclamamos uma Republica em 1889 somente para descobrir em 2017 que falta muito para sermos republicanos. Como igualar perante a lei se os porquinhos são mais iguais do que os cachorros? E se os leões eleitos para salvar o povo têm imunidade. Eis uma sobrevivência do passado imperial no presente republicano. De fato, quanto mais lutamos pela igualdade, mais criamos iniquidades. Ambiguidades ocorrem em toda parte, mas não viram valores.
Os americanos, por exemplo, queriam evitar demagogos e, com suas eleições em dois turnos, elegeram Trump. Os alemães — cuja língua só os mais inteligentes conseguem falar, conforme dizia um dos meus professores — inventaram o nazismo exatamente por serem compulsivamente corretos.
A ironia, como um hóspede não convidado, surge como um “inesperado” na mesma proporção de nossas intenções. É a obra do artista, como escreveu Nietzsche, que inventa o homem que a criou. “Os grandes homens, como eles são depois venerados, são o resultado subsequente de pequenas peças de ficção”.
O coletivo retorna ao jogo com a mesma potência com a qual ele foi ignorado. Uma matriz aristocrática — baseada em sucessão hereditária, programada para proteger parentes e amigos; uma sociedade na qual os “brancos” tinham como destino “não fazer nada” a não ser legislar, decretar e, acima de tudo, mandar enquanto os “negros-escravos” os complementavam praticando essa coisa terrível que é trabalhar — enfrenta hoje uma inexorável pressão igualitária.
Um sistema que teve como ideal afastar o trabalho das suas camadas dominantes resultou nessa novidade que hoje estamos enfrentando: trabalho dobrado. Trabalho adornado pela vergonha de ver a olho nu e sem convicções ideológicas como o viés aristocrático com seus penduricalhos estatais canibalizou a horizontalidade das posições políticas. A polaridade esquerda/direita foi engolida pela gradação tradicional do alto e do baixo, do pobre e do rico, por meio do aviltamento das políticas públicas transformadas em instrumentos de enriquecimento pessoal. A novidade é ver quadrilhas de “governantes” de um lado e do outro lotando as cadeias públicas.
E dentro delas, eis a negação da negação, reproduzindo regalias. De fato, como impedir que uma gangue de governantes e ministros criminosos coma do bom e do melhor? Sobretudo quando vivemos uma epidemia de culinária cujos chefs têm sotaque francês? O resultado direto, espera-se, será a melhoria das cadeias medievais agora preparadas para esses prisioneiros enobrecidos — esses vis batedores de carteira de ideais democráticos.
Assim, em conformidade com o nosso surrealismo jurídico-político, tais prisões deveriam ser privatizadas e transformadas em “prisões-resort-especiais” destinadas aos que têm o direito antidemocrático à “prisão especial” — essa brutal contradição em termos. Nelas, os ladrões dos nossos sonhos de igualdade, honra, honestidade, traballho e solidariedade coletiva teriam a sua doce e legalissíma punição.
A norma crítica do republicanismo — o axioma da democracia é a igualdade perante a lei. Nele, o crime cometido, e não a prerrogativa do cargo ou a pessoa que o ocupa, é o fiel do julgamento. Se certos cargos neutralizam a igualdade, voltamos à nobreza que, como o “você sabe com quem está falando?”, jamais abandonamos inteiramente. Como, eis a questão, neutralizar o princípio em função de papéis sociais e pessoas. A própria discussão é a prova mais clara do nosso horror à igualdade.