Ana Carbajosa - El País
Em entrevista, David Rieff fala sobre as recentes tensões nas sociedades multiculturais europeias
MADRI — É preciso escutar David Rieff com atenção para não perder o fio da meada. O historiador, escritor e ensaísta vai de um extremo ideológico ao outro sem complexos. É guiado pela valentia intelectual e décadas de estudo e observação. Ele se preocupa com a integração dos imigrantes no Ocidente e a má-formação das chamadas sociedades multiculturais.
Uma Europa que parece desnorteada ou naife, o Islã em uma crise profunda, ou os direitos humanos com credo absolutista, são alguns dos assuntos abordados nesta entrevista, por Rieff, que vive entre Estados Unidos e Europa. Na França, ele é professor na Sciences-Po, em Paris, sobre conflitos internacionais e ação humanitária.
Rieff preferiu durante o encontro deixar de lado sua faceta de filho de Susan Sontag, grande referência do pensamento progressista americano e cujo legado Rieff se sente na obrigação moral de zelar.
Nos anos 80 você já escrevia sobre imigração e multiculturalidade. Alguns dos problemas de integração de que falava continuam vigentes e outros pioraram, sem que os governos europeus tenham encontrado uma solução.
O que está acontecendo já se podia vislumbrar nos anos 80. Não havia dúvida de que pobres do sul iriam para o norte. A grande surpresa foi o Islã e sua crise. As pessoas não temem os imigrantes, temem o Islã. É absolutamente certo que os governos estão cegos. Não é possível que os alemães nos anos 60 pensaram que os gastarbeiter (os que imigraram para Alemanha para trabalhar) iam voltar para seus países, ou que alguém pensa que as pessoas não vão tentar cruzar Ceuta e Melilla. É surpreendente que uma mudança territorial minuscula na Ucrânia ganhe horas e horas da dedicação de um ministro, e as mortes no Mediterrâneo se encarregue quase por obrigação. Falta muita vontade política.
Na Europa, o populismo de direitas explora o medo ao diferente, enquanto a esquerda, complexada, teme abordar em muitos países. Por que não somos capazes de manter um debate sereno e racional sobre a imigração?
Porque não é somente a esquerda progressista que defende os imigrantes, os empresários também. A imigração é inevitável graças a uma aliança da esquerda com a classe empresarial. A ruptura dos sindicatos é em parte consequência da chegada de mais imigrantes. Os efeitos da globalização fazem a classe trabalhadora entrar em pânico. O futuro não parece promissor para ela. Um operário de Lille, sabe que seus melhores anos ficaram para trás, que agora enfrenta deslocalizações e mais imigrantes dispostos a trabalhar por menos dinheiro. Isso explica, por exemplo, que o Frente Nacional (partido de extrema-direita) seja a força dominante na França.
Os governos não param de reagir e os extremistas monopolizam o discurso. Como romper com essa dinâmica?
O único positivo que vejo da catástrofe de Paris é que agora as élites pensantes francesas já não poderão dizer que não está acontecendo nada. Os franceses formam a sociedade mais esclerosada que conheço na Europa. Agora, no entanto, o primeiro ministro francês fala de apartheid na banlieue (periferia) e isso é bom. Esses jovens estão com muita raiva e alguns estão propensos a cair nas redes do Estado Islâmico. Os jovens que crescem na Europa sabem que o islamismo radical é o que mais assusta aqui. Se sentem impotentes porque não têm poder econômico, nem cultural. Sua única arma é a brutalidade. A Europa tem que entender que não soube transmitir sua narrativa histórica aos muçulmanos. O fato de que cada instituto judaico da Europa esteja protegido tem a ver com que não assumiram a narrativa europeia. Em 1945 ninguém poderia pensar que isso iria acontecer.
Como chegamos até aqui?
A Europa está especialmente mal preparada para este tipo de problema. As elites europeias convenceram a si mesmas de que o mundo é um lugar racional. Não se dão conta de que o mundo é irracional e cruel. Acredito sinceramente que o período que vivemos entre 1945 e os anos noventa foram uma exceção de prosperidade e diminuição da barbárie. A volta da barbárie é só uma volta a normalidade. Aqui ainda tem um outro componente político. Nos EUA ou na América Latina, os jovens com raiva formam facções criminais. Aqui vão para a jihad. É um problema real, não foi inventado pela direita.
Você sustenta que um dos problemas é que os valores europeus foram diluídos, até quase deixar de existir?
Aos garotos da banlieue dizem: tem que aceitar os valores europeus. Mas que valores são esses? Isso é como pôquer. Não se pode derrotar algo com nada. Os valores se ressumiam a oferecer uma vida melhor, prosperidade, mas isso já não está ali. Na França, um fator muito importante foi a crise do comunismo, que era um motor de assimilação também nos subúrbios. Os comunistas controlavam os que causavam conflitos e mantinham a disciplina social nos bairros. Agora já não existe partido, existe imãs. Muitos deles fazem o que podem, mas não é o suficiente. Hoje vivemos em um mundo em que as questões de identidade tem muita importância. Outra razão fundamental da crise do Islã.
Está se referindo a que exatamente?
O Islã entrou em crise profunda. A brecha entre sunitas e xiitas virou uma guerra. As guerras que observamos no Oriente Médio tem a ver com essa fratura. Na Síria, por exemplo, está claro que se trata de uma guerra entre Qatar e Arábia Saudita, contra o Irã. Se olharmos a história do cristianismo, também vemos épocas de fanatismo que levaram adiante outras correntes cristãs. Creio que estamos em uma dessas épocas no Islã.
Chérif Kouachi, um dos terroristas do “Charlie Hebdo” disse que foram as torturas a muçulmanos em Abu Ghraib (Iraque) que o mudou.
Não acredito que o terrorismo islâmico tenha a ver com o fato de que o Ocidente não seja justo em Palestina ou Iraque. Pode haver explicações, mas não justificativas. Ou crê que se pode pôr bombas nos mercados ou não. Não existe um caminho intermediário. Os direitos humanos são um credo absolutista.
Síria se converteu em um grande imã para o jihadismo mundial. Europa e EUA parecem estar um pouco perdidos sobre como atuar.
Não podemos esperar que havendo uma guerra às portas da Europa as pessoas não fujam. Olha, sou professor de intervenção humanitária e posso dizer que não existe uma guerra justa. No caso sírio, não é possível justificar uma intervenção internacional, porque as possibilidades de sucesso são muito pequenas, e isso é um dos requisitos morais para intervir.
A comunidade internacional deve resignar-se?
A comunidade internacional como conceito não existe. Há uma ordem global, dominada por EUA e Breton Woods. Entramos num mundo multipolar, mas não imagino que os Estados Unidos não serão um grande poder. Na realidade, não acredito que o mundo mudou tanto, que o poder militar tenha perdido tanta relevância. Essa é uma ilusão europeia de que as guerras são algo do passado, e as pessoas serão cada vez mais ricas.