Sem apoio no Congresso Nacional, Lula se associa ao Judiciário num autoritário projeto conjunto de poder
Na última sexta-feira, 26, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu fazer um churrasco no Palácio da Alvorada, em Brasília. Chamou para jantar alguns ministros com quem fala diariamente, como Rui Costa (Casa Civil) e Alexandre Padilha (Relações Institucionais), e os líderes das bancadas do PT. Em princípio, tratava-se de um encontro casual para desafogar as mágoas depois de uma semana de derrotas no Congresso Nacional. Não fossem dois fatos: a proibição da entrada com aparelhos celulares; e, lá dentro, estarem também os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, além de Ricardo Lewandowski, que acabou de se aposentar.
Segundo relatos publicados na imprensa, os convidados disseram que, nesse encontro, foi debatida a escolha dos dois próximos ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo. Para a Corte eleitoral, foram escolhidos os advogados Floriano Azevedo Marques e André Ramos Tavares, ambos ligados a Alexandre de Moraes. Agora, com a composição completa, o TSE vai julgar nos próximos dias um pedido de inelegibilidade de Jair Bolsonaro e ações para cassar parlamentares aliados do ex-presidente.
Para o STF, já estava acertado o nome de Cristiano Zanin, que defendeu Lula na Lava Jato. O petista queria apenas a bênção da dupla que dá as cartas no Supremo. Alexandre de Moraes é quem comanda os inquéritos perpétuos contra conservadores, tornou-se o ministro que mais prendeu brasileiros na história da Corte e ainda chefia o TSE. Gilmar Mendes, antigo desafeto pelas ligações com tucanos, caiu nas graças do PT por liderar a frente “antilavajatista”, hoje majoritária, e os ataques ao ex-juiz Sergio Moro em programas de televisão.
A naturalidade com que ministros do Supremo — que não só julgaram casos da Lava Jato relacionados a Lula, como ainda vão analisar possíveis temas de interesse do presidente — compareceram à festa chamou a atenção até de jornalistas de esquerda. “A presença de ministros do STF no churrasco causou surpresa e gerou debates sobre a independência e imparcialidade do Judiciário”, afirmou o site Brasil 247.
Não foi a primeira vez que autoridades de Poderes “harmônicos, porém independentes entre si”, conforme o artigo 2º da Constituição, se misturam em convescotes. No ano passado, a cerimônia de diplomação de Lula foi seguida de uma festa na mansão de outro advogado antilavajatista, Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay — famoso por circular pelo Supremo trajando bermuda. Compareceram os ministros Alexandre de Moraes, Lewandowski e Dias Toffoli — também ex-advogado do PT.
“Não é de hoje que o Judiciário conspurca sua já precária reputação de isonomia mantendo relações esquisitas com o poder político e econômico. Ora, no poder público, em especial no Judiciário, a compostura é lei. Ela exige que os juízes sejam não só seus primeiros cumpridores, mas falem apenas nos autos, sejam conscienciosos com os limites de suas funções, não busquem holofotes nem usem o cargo para promover convicções pessoais. Não basta ao Judiciário ser isento. É preciso parecer.”
(Editorial do jornal O Estado de S. Paulo)
Para que serve o Congresso?
Não bastasse a reabilitação jurídica que o levou da prisão em Curitiba à Presidência da República, Lula tem hoje outros motivos para a devoção aos ministros do STF. O principal é que o Judiciário pode manter o seu governo em pé por algum tempo se um processo de impeachment se tornar realidade na Câmara. Isso ocorreria de duas formas: afastando por meio do TSE seus opositores do jogo eleitoral — principalmente, Jair Bolsonaro — e interferindo para reverter as derrotas no Congresso. Nesse último caso, a fórmula já é bem conhecida: sem votos, o PT e seus satélites acionam a Corte e forçam a judicialização de assuntos interna corporis do Legislativo. Até agora, conseguiram tudo o que pediram.
O próximo caso de intromissão do Judiciário no Legislativo será o marco temporal sobre a demarcação de terras indígenas. O governo e sua tropa de choque na Câmara tentaram barrar a aprovação da medida provisória na terça-feira, 30, mas perderam. O placar — 283 votos a 155 — também foi simbólico. Esse é o teto de votos, já com algum apoio no varejo, que Lula tem hoje — ou seja, menos de um terço da Casa. Com esse número, não consegue fazer nenhum projeto avançar. Qual foi a saída adotada? Já bateram à porta do STF, que vai analisar o caso em junho, segundo promessa feita pela ministra Rosa Weber.
A única exceção ao fiasco do governo no Congresso foi o chamado “arcabouço fiscal”, apelido da licença para o Executivo gastar. Por que a fórmula de gastos do ministro Fernando Haddad (Fazenda) passou pelo plenário da Câmara com facilidade? Porque os deputados têm interesse no Orçamento da União. Há uma fila de emendas parlamentares à espera de liberação nos ministérios. No caso dos deputados, a pressa é maior porque muitos vão se candidatar a prefeito ou têm seus afilhados políticos nas eleições do ano que vem — logo, o dinheiro vai financiar obras carimbadas nas cidades.
Foi o que aconteceu na quarta-feira, 31, data-limite para a aprovação da medida provisória que define a estrutura da Esplanada dos Ministérios. Se não fosse aprovada, Lula acordaria no dia seguinte com 24 pastas, e não com as 37 que nomeou. A dissolução de um ministério inteiro por falta de apoio no Congresso seria um revés inédito no país. O governo abriu o caixa e entregou numa canetada R$ 1,7 bilhão aos congressistas.
A medida provisória passou pelo Congresso por um triz. A proposta do governo foi totalmente desfigurada, especialmente em áreas ideológicas, como meio ambiente e questões indígenas. O relator da MP, Isnaldo Bulhões (MDB-AL), tirou poder das pastas de Marina Silva e da indígena Sonia Guajajara e protegeu a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) dos interesses do MST.
Pela manhã, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), comunicou a Lula, por telefone, que a articulação política do governo iria falhar de novo — a exemplo do Projeto de Lei 2630, que trata da mordaça nas redes sociais. O recado foi claro: nem a montanha de dinheiro em emendas resolveria a falta de uma base sólida na Casa. Lira, inclusive, manifestou sua insatisfação pessoal com o fato de Lula manter o filho de Renan Calheiros, seu maior inimigo, no Ministério dos Transportes. A briga com Renan escalou nesta semana. O senador acusou Lira nas redes sociais de bater na ex-mulher. Ele disse que Renan “é um psicopata”.
Lira chegou a afirmar que não trabalharia a serviço do governo para aprovar a MP. “Não tenho como desempenhar o papel do governo para conduzir as matérias dele. Há uma insatisfação generalizada dos deputados. Se hoje o resultado não for aprovado, a Câmara não será responsável pela falta de organização política do governo”, disse.
A votação na Câmara foi tensa e selada por ameaças nos bastidores. “Não haverá mais nenhum tipo de sacrifício. Não aconteceu nada de fora para dentro, nenhum acordo”, afirmou Lira.
“Foi o último voto de confiança do Congresso. Os líderes do Centrão conseguiram convencer as suas bancadas que estavam decididas a derrotar a MP”, afirmou Felipe Carreras (PSB-PE), líder do “blocão de Lira”. “Os recados vêm sendo dados dia após dia, matéria após matéria. Esta Casa já se posicionou de forma bastante firme em relação ao marco do saneamento. Depois, veio o marco temporal. O governo procurou entender o que estava acontecendo na Câmara dos Deputados? Não”, afirmou Elmar Nascimento (UB-BA).
O pano de fundo da votação, contudo, foi além de emendas ou articulação política. Lira só decidiu jogar a toalha quando foi informado de que o ministro Dias Toffoli liberou um processo contra ele que estava parado há três anos no STF. Com isso, ele pode se tornar réu neste mês, o que levantaria outro debate: se poderá ou não permanecer na linha sucessória presidencial — há jurisprudência pelo afastamento da cadeira.
Na manhã seguinte, outra notícia o emparedou: a Polícia Federal, comandada por Flávio Dino (Justiça e Segurança Pública), disparou uma operação contra seus aliados regionais. Um antigo assessor foi preso em Alagoas.
Companheiros de toga
Paralelamente, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), parou o Senado para ajudar o Palácio do Planalto. A sessão da CPMI do dia 8 de janeiro, agendada para quinta-feira, 1º, foi cancelada, justamente quando o jornal O Globo revelou que o ex-chefe do GSI, general Gonçalves Dias, falsificou um documento para esconder que sabia do risco de ataques em Brasília. Os senadores foram chamados para aprovar às pressas a medida provisória do ministério.
Pacheco, aliás, tinha mais uma tarefa: mandar o presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), Davi Alcolumbre (UB-AP), preparar uma sabatina para o futuro ministro do STF, o advogado Cristiano Zanin, com quem ele jantara na véspera. Apesar dos protestos generalizados nas redes sociais e no Congresso contra a escolha do advogado e amigo pessoal, a nomeação de Zanin está praticamente sacramentada. O STF passará a ter mais um “antilavajatista” declarado ao lado de Mendes, Toffoli e Moraes.
Nesta sexta, 2, Lula encerrou mais uma péssima semana com derrotas no Congresso, perdeu o apoio que mantinha na imprensa tradicional — especialmente por causa da recepção ao ditador venezuelano Nicolás Maduro — e tem duas CPIs duras pela frente: a do 8 de janeiro, com seu guarda-costas, general Dias, enrolado até o pescoço, e a do MST. Ainda não se sabe se ele vai reunir novamente a bancada da toga no Palácio da Alvorada.
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Por Revista Oeste