sexta-feira, 30 de junho de 2023

'Redes de pedofilia assombram o Instagram', por Branca Nunes

 

Foto: Shutterstock


Reportagem publicada no Wall Street Journal mostrou que a rede social ajuda a conectar e promover contas dedicadas à divulgação e compra de conteúdo sexual envolvendo crianças e adolescentes


Em 14 de junho, a estudante de veterinária Anna Beatriz Moreira estarreceu-se com o vídeo publicado na página do Instagram do Lei Seca Maricá, um site com notícias da região fluminense. Nas imagens que mostravam um homem acusado de estuprar uma criança, ela reconheceu Paulo Sérgio, caseiro numa residência onde Anna e o marido cuidavam dos cães. Mais de uma vez ela levara para o trabalho a filha de 5 anos e a enteada, de 11. 

Anna ficou ainda mais sobressaltada ao terminar a leitura. Segundo a reportagem, o abusador também armazenava materiais pornográficos envolvendo crianças. Ela entrou no perfil do Instagram que a notícia indicava como sendo do pedófilo e encontrou incontáveis fotografias da filha, desde o nascimento até hoje. Boa parte das imagens havia sido retirada da página pessoal de Anna na rede social.

“Fiquei apavorada”, resumiu Anna. “Conhecia o Paulo Sérgio há cinco anos e ele sempre foi uma pessoa respeitosa. Por alguns minutos, cheguei a duvidar de que fosse ele naquela reportagem, mas a dona da casa em que eu trabalhava confirmou a informação.”

A partir do momento em que descobriu as fotos da filha publicadas na rede social de um pedófilo, Anna começou uma luta inglória. Há mais de 15 dias ela tenta, em vão, que o Instagram derrube o perfil thaila_mundo_magico. Além das imagens de sua filha, lá estão fotografias de crianças e bebês de várias idades, a maioria meninas, grande parte de biquíni ou usando fralda, algumas tiradas durante o banho. Estranhos vídeos e fotografias de macacos, cachorros, aranhas e outros animais permeiam a página.


Foto: Reprodução/Redes Sociais

“Cerca de 85% daquele perfil são imagens da minha filha”, indignou-se Anna. “Denunciei várias vezes e pedi para todos que conheço fazerem o mesmo. Também tentei falar com alguém do Instagram, e nada. Agora contratei uma advogada para processá-los.” Nada disso adiantou. A página criada por um criminoso preso, acusado de estuprar uma criança de 6 anos, continua no ar. Como normalmente acontece quando se tenta falar com os responsáveis pelas chamadas big techs, as respostas são automáticas, enviadas por robôs.

O problema é ainda mais sério. Ao pesquisar quem segue, curte ou comenta as imagens publicadas por Paulo Sérgio no Instagram, depara-se com dezenas de páginas semelhantes à thaila_mundo_magico. A maioria tem como foto do perfil o retrato de uma criança e, dentro, dezenas de imagens de menores de idade. Alguns perfis são estrangeiros e vários incluem no nome palavras como “estrela”, “meninas”, “beauty“, “baby“. Esse padrão também é observado nos perfis que seguem esses perfis. 

O perigo na palma da mão

Uma reportagem publicada recentemente no Wall Street Journal mostrou que o Instagram ajuda a conectar e promover uma vasta rede de contas abertamente dedicadas à divulgação e compra de conteúdo sexual envolvendo crianças e adolescentes. Tudo isso abertamente, sem precisar recorrer à chamada deep web. As investigações envolveram pesquisadores das Universidades Stanford e de Massachusetts Amherst.

Segundo o WSJ, essa rede social não só conecta pedófilos entre si, mas direciona usuários para vendedores de materiais de abuso sexual infantil através de sistemas de recomendação de perfis semelhantes. Os pesquisadores de Stanford e Massachusetts criaram páginas de teste com o objetivo de verificar como os algoritmos recomendavam os conteúdos de pedofilia. A visualização de apenas um único perfil do tipo foi suficiente para que outras contas passassem a aparecer em um campo chamado “sugerido para você”. Ao seguir uma das sugestões da rede social, a conta teste passou a ser inundada de conteúdos que sexualizam crianças.

Eles também descobriram que o Instagram permitia aos usuários pesquisar hashtags explícitas, como #pedowwhore e #preteensex e os conectava a contas que usavam esses termos para anunciar material de sexo infantil à venda. “Essas contas geralmente afirmam ser administradas pelas próprias crianças e usam nomes abertamente sexuais”, revelou o WSJ.

Numa rápida busca pelo Instagram, a reportagem de Oeste deparou-se, por exemplo, com a hashtag #preteenager. Ali estão imagens reais e outras nitidamente criadas em computador. Entre as fotos falsas, um menino que aparenta ter menos de 13 anos veste uma tanga verde-limão ao estilo gogo boy. Nas publicações ao lado, meninas (reais) posam para a câmera de maiô, outras fazem acrobacias, algumas apenas sorriem. A maior parte das fotos é publicada pelo próprio adolescente ou por algum familiar, que usa a hashtag de forma inocente, sem saber que dessa forma está ajudando a alimentar uma rede de pedofilia.


Foto: Reprodução/Redes Sociais

“Sem querer, os pais são os maiores fornecedores de material para esses criminosos”, observou a professora de oratória Sheylli Caleffi, militante pela erradicação da violência sexual e on-line, em entrevista ao programa As Liberais. Em suas postagens, ela mostra como as hashtags facilitam a busca dos pedófilos, tanto para encontrar fotos como para se conectarem com outros abusadores. “A verdade é que a internet não é lugar de criança e o Instagram não é um álbum de fotos. Uma pergunta que os pais precisam se fazer é se é realmente necessário postar as imagens dos filhos nas redes sociais.”

Essas hashtags levam a perfis ainda mais assustadores. Um deles, chamado infiniteboyhood, mostra meninos em situações que poderiam parecer normais, se não fossem detalhes reveladores. Na descrição da página, por exemplo, está a frase “saudável como uma tigela de cereais com leite”. Embaixo, o “aviso”: “conta monitorada pelo jovem Dumbledore”, numa referência ao diretor da escola de bruxos Hogwarts, da série de filmes Harry Potter. Em uma das fotografias, um menino loiro, de olhos azuis, sem camisa, está deitado no chão. Ele aparece apenas da cintura para cima e olha assustado para a câmera. Na legenda da imagem, a frase “Oh oi! Eu não tinha te visto aí”. A postagem tem 750 curtidas e cinco comentários, todos feitos por homens adultos. Alguns escrevem frases irônicas, outros colocam emojis de chamas — uma referência à sensualidade e excitação — e carinhas com olhos de coração. 


Foto: Reprodução/Redes Sociais

Sheylli explica que os emojis são uma forma de linguagem velada entre pedófilos. Espiral azul ou um pedaço de pizza são símbolos clássicos de pedofilia. A berinjela representa o órgão sexual masculino. O pêssego significa nádegas. Num de seus vídeos ela mostra como, com menos de cinco cliques, qualquer pessoa consegue acessar o submundo do Instagram. 

Um dos vídeos de Sheylli que teve maior repercussão nas redes sociais mostra uma página com dezenas de imagens de crianças dançando músicas ao estilo TikTok. Para dar uma conotação sexual, os pedófilos intercalam esses vídeos com outros em que mulheres adultas aparecem em poses sensuais. “Individualmente esses vídeos não são um problema”, observa Sheylli. “Mas se tornam quando são publicados numa página, todos juntos, ao lado de vídeos de mulheres mais velhas, vídeos eróticos e de nudez. No conjunto, isso vira pornografia, porque está num contexto pornográfico. É isso que precisamos ter em mente. Não podemos ser ingênuos no mundo digital.”

De acordo com a reportagem do WSJ, as contas do Instagram que oferecem material sexual ilícito para venda geralmente não o divulgam abertamente. Em vez disso, publicam “cardápios”. Alguns incluem os valores de vídeos com crianças se machucando e imagens de menores praticando atos sexuais com animais. Pelo preço certo, os menores estão disponíveis para encontros presenciais. Maltego, um software de mapeamento de rede, mostrou que 112 dessas contas tinham, juntas, 22 mil seguidores únicos.

Condenar X punir

Ao responder às perguntas enviadas pelo WSJ, a Meta, empresa que administra o Instagram, afirmou que “a promoção de conteúdo de sexo com menores de idade viola as regras estabelecidas pela companhia, bem como a lei federal”. Apesar disso, reconheceu problemas em suas operações de fiscalização e afirmou ter montado uma força-tarefa interna para tratar das questões levantadas pela reportagem. Nos últimos dois anos, a plataforma derrubou 27 redes pedófilas e, desde que foi informada da pesquisa feita pelo WSJ, “bloqueou milhares de hashtags que sexualizam crianças, algumas com milhões de postagens, e restringiu seus sistemas de recomendar aos usuários que pesquisem termos associados a abuso sexual”. 

Nenhuma criança ou adolescente está livre de abuso e exploração on-line, especialmente com o uso massivo da internet por meio de celulares, tablets ou computadores

Alex Stamos, chefe do Observatório da Internet de Stanford e diretor de segurança da Meta até 2018, disse ao WSJ que controlar esses abusos exigiria um esforço contínuo da empresa. “O fato de uma equipe de três acadêmicos com acesso limitado ter encontrado uma rede tão grande deveria disparar os alarmes na Meta”, disse, antes de afirmar que a empresa tem ferramentas muito mais eficazes para mapear sua rede pedófila do que terceiros. 

Terra de ninguém

Embora não seja a única plataforma usada por pedófilos, o Instagram apresenta um problema particularmente preocupante. No Twitter, por exemplo, a equipe da Universidade Stanford encontrou 128 contas que se ofereciam para vender material de abuso sexual infantil — menos de um terço do número registrado no Instagram. Diferentemente da rede da Meta, o Twitter não recomendou essas contas e as derrubou muito mais rapidamente.

Com cerca de 1,3 bilhão de usuários, o Instagram é especialmente popular entre os adolescentes. No Brasil, ultrapassa a marca de 115 milhões de pessoas e, nos Estados Unidos, 150 milhões. Nenhuma criança ou adolescente está livre de abuso e exploração on-line, especialmente com o uso massivo da internet por meio de celulares, tablets ou computadores. Segundo uma reportagem do Correio Braziliense publicada em maio deste ano, a Safernet, uma associação civil de direito privado com foco na promoção e defesa dos direitos humanos na internet no Brasil, divulgou a ocorrência de quase 112 mil denúncias de crimes envolvendo fotos e vídeos de violência sexual contra crianças no país em 2022. O número representa um aumento de cerca de 10% em relação ao ano anterior — tendência registrada desde 2020.


O Instagram é especialmente popular entre os adolescentes. No Brasil, ultrapassa a marca de 115 milhões de usuários | Foto: Shuttestock

“A pesquisa TIC Kids Online Brasil, feita pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), apontou que 88% das crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos que usam a internet no Brasil têm pelo menos um perfil nas redes sociais, sendo que 78% dos entrevistados têm smartphone e 53% acessam a internet pelo celular”, informou o Correio. O ambiente virtual está entre os principais locais onde mais ocorrem as agressões. 

“O brasileiro gasta em média 3 horas e 42 minutos por dia nas redes sociais”, observa Karina Marchesin, pesquisadora e coordenadora-geral do iStart, instituto criado para difundir a cultura e a educação digital de jovens em todo o país. A média mundial é de 2 horas e 31 minutos. “A realidade é que as crianças e os adolescentes estão hiperconectados. É preciso educar esses jovens também no ambiente digital. Os pais têm o dever da vigilância, assim como os filhos têm o dever da obediência.”

De acordo com uma pesquisa do iStart, as crianças começam a ter acesso a redes sociais no Brasil a partir dos 9 anos, enquanto a média mundial sobe para 12 anos. “Naturalizamos a presença das crianças nas redes sociais, mas isso não é natural”, afirma Karina. “É preciso resgatar o convívio entre pais e filhos, e interagir, pegar no pé, observar e, principalmente, não delegar a função da educação, em todos os níveis, para a tecnologia.” Na terra sem lei das redes sociais, a criança é uma presa fácil.

Leia também “Como as escolas estão escondendo a educação sexual dos pais”

Branca Nunes, Revistar Oeste