O exército mercenário odeia mortalmente a “elite” no governo russo. Para eles, são burocratas bilionários, traidores de uma causa maior
OGrupo Wagner, milícia privada criada por Yevgeny Prigozhin, tentou dar um golpe de Estado em ninguém menos do que Vladimir Putin ao marchar com 15 mil homens armados em direção a Moscou, no dia 24 de junho. Mas tudo terminou com uma boa conversa, e todos voltaram em paz para a guerra. Quão esquisita é essa narrativa?
Como tudo o que envolve a Rússia e a Ucrânia, tanto pode ter havido a maior ameaça ao governo de Putin em 23 anos como pode ter sido um mero jogo de cena, provavelmente mascarando uma nova ofensiva. Yevgeny Prigozhin afirmou, em um áudio de 11 minutos, que não queria derrubar Putin, e sim reclamar do tratamento dado ao grupo, que havia sido bombardeado pelo próprio Exército russo na última semana. O Grupo Wagner, clamando possuir 15 mil homens (com o corolário implícito “armados até os dentes e com treinamento de guerra sem lei”), tomou a cidade ao sul de Rostov. Algo grande, pois é lar do comando de metade das forças terrestres russas — a Marinha está instalada no Ártico.
O simbolismo de cruzar uma fronteira de guerra na Ucrânia e voltar para a Rússia é óbvio demais, tal como Júlio César fez nas Guerras Gálicas ao voltar para Roma cruzando o Rio Rubicão — quando teria dito seu famoso epigrama “alea jacta est”, “a sorte está lançada”. Como disse Frank Furedi na Spiked, “cruzar o Rubicão nunca foi tão fácil”. Mais um motivo para desconfiança. Após um acordo mediado com o “presidente” bielo-russo Aleksandr Lukashenko, o Grupo Wagner abandonou a guerra na Ucrânia e se destacou para Belarus. “A manifestação até aquele ponto foi suficiente”, afirmou Prigozhin.
Segundo analistas militares russos, a revolta envolveu o abate de seis helicópteros russos e de um avião de comando IL-22M, matando 13 pilotos. A destruição atingiu pontes e mais de 100 quilômetros de estradas, além de um depósito de combustível aéreo, incendiado em Voronezh.
Brasileiros e norte-americanos aprenderam a chamar uma destruição niilista de prédios vazios, protagonizada por alguns desesperados desarmados, de “golpe de Estado” — saber o que é, de fato, uma insurreição deveria ser uma lição para estes dias.
A ministra de Relações Exteriores alemã Annalena Baerbock garantiu que o Ocidente não iria se envolver em uma “disputa de poder político doméstica”, destacando que é “incerto o que ocorrerá com os diferentes atores”. Tivemos um acordo, uma encenação ou um ato perigosíssimo, com mortes e insurreição militar, que pode levar a uma guerra civil? Nenhum cenário ainda é claro.
Provokatsiya russa
Chamar o Grupo Wagner de “exército mercenário” não é 100% correto. A região é dominada ainda por oligarcas e warlords: pequenos ajuntamentos, geralmente de ex-militares, que dominam áreas fronteiriças ou em disputa. Boa parte dos presidentes/ditadores dos pequenos países do antigo bloco soviético veio dessa oligarquia das armas — a forma mais antiga de poder consolidado. Em regiões inóspitas, com contornos ainda hoje porosos, e cujos “países”-satélites foram invenções soviéticas sem respeito à história, etnia e cultura, essa forma de “proteção” é muito respeitada.
Yevgeny Prigozhin é um nativo de São Petersburgo, como Putin. Passou nove anos preso nos tempos soviéticos por crimes comuns. Segundo se diz, fez sucesso comercial vendendo… cachorros-quentes. Depois de criar um restaurante de luxo no qual o próprio Putin negociava sua ascensão, ganhou o apelido de “cozinheiro de Putin” e tornou-se bilionário como é o caminho na Rússia: com contratos públicos.
Mas o verdadeiro negócio de Prigozhin é a guerra. Negócio business mesmo. Montou um exército com pessoas saídas da prisão, oferecendo-lhes uma anistia. O Grupo Wagner é mais um entre vários outros destacamentos que atuam na região, como a milícia Donbass, em condições subumanas desde 2014, ou o batalhão Kadyrovtsy, do presidente checheno Ramzan Kadyrov, o “Stalin do Século 21”. O mais famoso, que remonta aos tempos de Ivan, o Terrível, foi o exército Oprichnik. Quase 500 anos depois, a região ainda conta com seus mercenários. Todas essas divisões possuem certa ideologia que lhes permite fugir do rótulo de “mercenários” — além de serem financiadas por governos, em regiões onde público e privado não são perfeitamente distintos. Mas o Grupo Wagner possui algo a mais: financiado por uma das maiores economias do mundo (e membro do Brics!), sua atuação já envolveu Síria, Líbia e — dizem jornalistas que foram assassinados — até a República Centro-Africana.
Em maio de 2023, uma das maiores vitórias russas na guerra teve a assinatura wagneriana: a captura da cidade de Bakhmout. Mas foi durante essa batalha que a insubordinação tomou forma, com Prigozhin disparando vídeos de insulto ao comando russo, acusando falta de munição. Mestre da provokatsiya, ele propôs ao presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, disputar o destino de Bakhmout num duelo aéreo.
Mercenários com uma causa
Mercenários estatais ou sob comando de um ente privado — pouco importa para as nações da Otan. Sua iconografia inclui até um documentário com legendas em inglês, PMC Wagner – Best in Hell, de 2022, com a típica narrativa maniqueísta autoadulatória.
Há três principais problemas com o uso de mercenários na guerra. O primeiro é que mercenários são criados sob fogo, muitos sem sequer treinamento militar anterior. A guerra é tudo o que conhecem, a única linguagem que compreendem. Por conseguinte, detestam a paz e só conhecem a violência, nem sempre com freios.
A grande tensão entre o Grupo Wagner e Putin revela uma das falhas de interpretação do Ocidente em relação à Rússia: conforme já analisamos, um dos vezos é insistir no caráter autocrata de Putin — e, para tal, tratá-lo como irracional e como se toda a Rússia fosse um monobloco — quando, na prática, nem mesmo seus ministros se entendem (o que é quase um clichê russo, ainda mais em tempos de guerra).
O Grupo Wagner odeia mortalmente a “elite” no governo russo. Para eles, são burocratas bilionários, traidores de uma causa maior (o que não costuma ser uma preocupação entre grupos mercenários “puros”). Para o Wagner, a Guerra na Ucrânia já poderia ter sido decidida há tempos com alguns botões que só podem ser apertados do Kremlin — mas Putin tem de negociar com oligarcas, políticos que vieram das estruturas burocráticas soviéticas, carreiristas ultrapoderosos e magnatas de gosto duvidoso. Todos “traidores”, para o Grupo Wagner.
Há outra pessoa que pensa o mesmo do governo Putin: o próprio Putin. O que levanta certas suspeitas sobre o tal “golpe de Estado” com 15 mil fuzileiros e que termina com uma conversa, 12 horas depois.
O segundo problema é mais geopolítico e afeta apenas o Ocidente. Se um grupo mercenário comete crimes de guerra em território inimigo, como julgá-lo à luz do Direito Internacional? Na prática, seus membros não são o Exército de um dos países. E se não forem capturados pelo inimigo… estarão, literalmente, em território sem lei. Cabe aos mercenários, então, o trabalho sujo dentro de um trabalho já sujo: torturas, estupros coletivos, métodos pouco ortodoxos para confissões, de roubos a genocídios.
Mesmo o Ocidente já enfrentou esse dilema — aliás, grupos mercenários são absolutamente comuns em guerras, revoluções e até serviços de polícia e inteligência nos mais livres dos países. O caso que gerou mais rebuliço recentemente foi o da companhia norte-americana Blackwater, escalada para a Segunda Guerra do Iraque por Donald Rumsfeld.
A “Doutrina Rumsfeld”, como ficou conhecida, era baseada na ideia de uma “privatização” do Exército norte-americano: o ex-secretário de Defesa americano afirmou que a América enfrentava um gigantesco inimigo, que poderia colocar o país de joelhos: a burocracia infinita das Forças Armadas. O discurso passaria batido, se não tivesse sido feito no dia 10 de setembro de 2001, véspera do maior atentado terrorista da história norte-americana.
A “privatização” mezzo informal de Rumsfeld envolveu principalmente a empresa Blackwater, criada por Erik Prince, um ex-oficial Navy SEAL, num pântano na Carolina do Norte. A Blackwater foi extensamente explorada pela campanha de Obama para criticar privatizações e o aparato militar norte-americano. Tudo por causa de um desastre militar outremer: o Massacre da Praça Nisour, quando agentes da Blackwater atiraram em civis iraquianos, matando 17 e ferindo outros 20. Não sem alguma ironia sádica, o governo de Putin, com seus vastos grupos mercenários à margem da lei internacional, adora explorar o caso para culpar a América e suas “guerras imperialistas”.
O terceiro dilema remonta ao filósofo florentino Maquiavel. Foi sua teoria, que separa a ética da prática política até hoje, que alertou sobre o uso de forças mercenárias por um príncipe que queira tomar o poder sobre um território. Escreveu Maquiavel, em O Príncipe:
“Digo, pois, que as armas com as quais um príncipe defende o seu Estado, ou são suas próprias ou são mercenárias, ou auxiliares ou mistas. As mercenárias e as auxiliares são inúteis e perigosas e, se alguém tem o seu Estado apoiado nas tropas mercenárias, jamais estará firme e seguro, porque elas são desunidas, ambiciosas, indisciplinadas, infiéis; galhardas entre os amigos, vis entre os inimigos; não têm temor a Deus e não têm fé nos homens, e tanto se adia a ruína, quanto se transfere o assalto; na paz se é espoliado por elas, na guerra, pelos inimigos. A razão disto é que elas não têm outro amor nem outra razão que as mantenha em campo, a não ser um pouco de soldo, o qual não é suficiente para fazer com que queiram morrer por ti.” (Grifos nossos.)
Talvez o Grupo Wagner tenha algo além de soldo em vista: sua causa, diga-se, envolve até mesmo o uso de armas nucleares contra a Ucrânia, o que ainda não passou de verborragia da parte de Putin e seu apparatchik. Mas ter uma causa como essa não é exatamente um alívio comparado aos mercenários “clássicos”: parece mesmo um sinal de ruína do poder de Putin.
Se os mercenários da “insurreição” eram tão incensados há menos de dois meses pelo articulador de Putin, podemos desconfiar de um “golpe de Estado” que termina em conversa
Indefinição
Com perdas materiais incontáveis, uma década pela frente sem investimentos (isso sendo do Brics e, como costuma ocorrer, contando com o apoio envergonhado de Lula), muitos civis e generais mortos, Finlândia e Suécia na Otan (e provavelmente a Turquia saindo da zona de influência de Putin e mirando a Europa), sem um apoio mais do que incentivador da China, é certo que Putin já teria caído há muito, fosse um líder ocidental.
Mas, como afirmou recentemente seu conselheiro Aleksandr Dugin, em uma hagiografia do Grupo Wagner, tratando-os quase como anjos, os wagnerianos deram à “Nova Guerra Patriótica” (a primeira teria sido a Segunda Guerra Mundial) um “estilo”. Sem negociações, acordos e compromissos — pensando em meritocracia apenas no campo militar —, ao contrário da “elite oligárquica” da burocracia estatal russa, da qual Dugin e Wagner querem se “purificar”. No processo de purificação, inclusive étnico, citam até os latino-americanos como povos “heroicos” a serem purgados da influência ocidental.
Definitivamente, não é um modelo de pensamento, ideologia e ação política e militar capaz de ser compreendido por líderes como Biden, Kamala, Macron, Trudeau e sua trupe.
Se os mercenários da “insurreição” eram tão incensados há menos de dois meses pelo articulador de Putin, podemos desconfiar de que o “golpe de Estado” que termina em conversa, mesmo com mortes, apenas mascare uma ofensiva ainda mais brutal.
Valentin Vasilescu escreveu que pode ser uma verdadeira maskirovka russa: a arte da desinformação militar para enganar o inimigo (desinformação real, não como “desinformação” virou um termo bobo nos últimos anos).
Assim, logo “dinossauros” da velha guarda oligárquica, como Shoigu e Gherasimov, seriam substituídos (o que talvez interesse ao próprio Putin), e o moedor de carne russo voltaria à Zaporozhye, onde está uma base nuclear ucraniana. Com os objetivos alcançados, Prigozhin diria que foi apenas um nervosismo desnecessário, tudo voltaria ao normal, e logo a Rússia tomaria Kharkov de assalto, tal como fez com Soledor e Bakhmout.
Nenhum cenário parece esperançoso para o fim da guerra.
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Flávio Morgenstern , Revista Oeste