sexta-feira, 30 de junho de 2023

'Fracasso em quatro rodas', por Carlos Cauti

 

Foto: Montagem Revista Oeste/Shutterstock


Quem acabou se beneficiando da generosidade do governo com os subsídios às montadoras+ foram as classes média e alta. As quais correram para as concessionárias, fechando ótimos negócios


“Insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes.” Essa frase, atribuída a Albert Einstein, descreve fielmente a atuação do governo Lula em vários âmbitos. Mas em nenhum é tão fidedigna como na política de subsídios. Especialmente os concedidos ao setor automotivo. 

Mais do que uma reincidência, é quase uma obsessão. Provavelmente motivada pelo (curto) currículo de Lula como metalúrgico. 

Uma paixão desenfreada por torrar dinheiro público em prol de montadoras. Poderia ser cômica se não fosse tragicamente financiada pelos bolsos dos cidadãos brasileiros. Com bilhões de reais de impostos jogados pontualmente no ralo tentando animar uma indústria que se mantém inerte há mais de uma década. Justamente por causa das dificuldades criadas pelas gestões petistas passadas. 

Desta vez, o “plano infalível” de Lula III foi incentivar a compra de carros populares cortando IPI, PIS e Cofins. O desconto poderia chegar a mais de 12% do valor, ou até R$ 8 mil. O primeiro problema é que acabou sendo concedido para modelos de até R$ 120 mil. Revisitação curiosa do conceito de “carro popular”. Em um país onde a renda média mensal é de R$ 1.586. Insensatez econômica em estado puro.

Apenas para quitar o IPVA de um carro desses é necessário desembolsar até R$ 4 mil. Mais de duas vezes o valor recebido mensalmente pelo brasileiro médio. Sem contar seguro, gasolina, manutenção e as implacáveis multas. Essas, sim, fúlgido exemplo da única indústria que jamais conheceu crise neste país. 


Revisitação curiosa do conceito de “carro popular”, em um país onde a renda média mensal é de R$ 1.586 | Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
Carros inacessíveis, mesmo com desconto

Como resultado, as classes mais pobres experimentaram por esse programa o mesmo sentimento que os petistas têm por um livro de economia básica: indiferença. Mesmo com os descontos, os cidadãos ficaram longe das concessionárias pela simples razão de não poderem pagar o valor que sobra.

Hoje o carro mais barato do Brasil é o Renault Kwid Zen 1.0, vendido por quase R$ 70 mil. Com o subsídio público, acabou ficando em pouco mais de R$ 60 mil. A montadora decidiu cortar outros R$ 2 mil. Total: R$ 58.990. Cerca de 40 vezes a renda média mensal do brasileiro. Impossível de pagar, mesmo financiando em 60 vezes. Especialmente com juros de 13,75% ao ano.

O valor supera até mesmo o de um imóvel. Uma casa com dois quartos, duas vagas de garagem e 270 metros quadrados no Itaim Paulista, bairro popular na periferia de São Paulo, está sendo anunciada por R$ 35 mil. Entre comprar a casa própria e adquirir um carro, a preferência dos brasileiros de baixa renda é clara. 


Hoje, o carro mais barato do Brasil é o Renault Kwid Zen 1.0 | Foto: Reprodução/Renault
Desconto do PT beneficiou as classes mais abastadas

Quem acabou se beneficiando da generosidade do governo foram as classes média e alta. As quais, obviamente, correram para as concessionárias, fechando ótimos negócios. Pessoas que provavelmente iriam trocar de carro de qualquer jeito. Acabaram recebendo uma ajuda dos cofres públicos, que pagaram parte da conta. 

Ou seja, os impostos dos brasileiros mais pobres, considerado um eleitorado tradicional de Lula, permitiram a compra de dezenas de milhares de carros que entrarão nas garagens de brasileiros mais ricos. Regressividade econômica na veia, redistribuição de renda ao avesso e genialidade política concentradas em uma única medida. 

No dia do fechamento desta reportagem, mais de 90% dos R$ 500 milhões disponibilizados inicialmente já haviam sido utilizados para comprar cerca de 46 mil carros com descontos. Basta olhar o elenco dos modelos mais vendidos para perceber que essa política de subsídios é tão popular quanto a mobília escolhida por Janja para decorar o Palácio da Alvorada. 

Dos primeiros cinco modelos, nenhum está entre os carros mais baratos do mercado. Evidência de que esse desconto serviu para financiar camadas sociais mais abastadas, que normalmente moram mais próximas do trabalho ou da escola e que dependem menos do transporte público. Não favoreceu em nada os mais necessitados, que sofrem diariamente com extenuantes horas em trens, metrôs e ônibus lotados.

O campeão de vendas foi o Volkswagen Polo, um dos modelos favoritos dos jovens endinheirados, com cerca de 6 mil exemplares emplacados em três semanas. Preço do modelo básico: R$ 81 mil. Seguido pela picape Fiat Strada, com cerca de 5 mil unidades que saíram das concessionárias e valor a partir de R$ 116 mil. Em terceiro lugar vem o Hyundai HB20, outra paixão dos mauricinhos urbanos, que vendeu mais de 3,5 mil exemplares, com custo inicial de quase R$ 80 mil. A quarta posição é do Chevrolet Onix, com mais de 3,3 mil vendas, a pelo menos R$ 82 mil cada. Em quinto está o Fiat Argo, cuja configuração mais barata também não sai por menos de R$ 70 mil e que vendeu mais de 2,6 mil unidades. 

Mas no elenco dos campeões de vendas há também modelos ainda mais caros. Como a Chevrolet Montana, cuja tabela parte dos R$ 118 mil. Ou o Jeep Renegade, que custa R$ 1120 mil. O modelo básico, claro. Somente para encher o tanque desses gigantes, o motorista gasta cerca de R$ 300. Ou seja, na quinta parada no posto de gasolina, acabou o salário do mês do brasileiro médio.

“Nem o próprio governo está mais usando a palavra ‘carro popular’. Agora são chamados de ‘carros mais baratos’, explica a Oeste Cassio Pagliarini, sócio da Bright Consulting, especializada em mercado automotivo. “As classes populares não se beneficiaram desse programa. O que aconteceu foi a antecipação da compra de carros por parte de pessoas mais ricas.”


O campeão de vendas foi o Volkswagen Polo, um dos modelos favoritos dos jovens endinheirados | Foto: Divulgação/Volkswagen
Locadoras também gozarão de descontos

As locadoras também poderão se beneficiar dos subsídios públicos. Atualmente, essas empresas absorvem cerca de 30% de todos os carros vendidos no Brasil. E têm a capacidade financeira de adquirir um volume ainda maior de veículos, pois, diferentemente das pessoas físicas, já muito endividadas e com inadimplência elevada, não têm restrições de crédito. Isso vai acabar elevando ainda mais os preços, distorcendo ulteriormente o mercado. 

“Se uma locadora comprar 10 mil veículos com um desconto médio de R$ 5 mil, ela vai ter lucrado no final da operação R$ 50 milhões apenas graças à bondade do governo federal”, salienta Pagliarini. 

Como se não bastasse, a medida é mais um peso nas já devastadas contas públicas. Dificultando o cumprimento das metas estabelecidas pela equipe econômica no arcabouço fiscal. Em um momento em que o ministro Haddad está desesperadamente correndo atrás de novas receitas, tentando cortar justamente os benefícios fiscais que choveram nos governos petistas do passado, o Executivo cria outra renúncia tributária.

“Essa é uma receita velha, que deve ter um efeito pequeno sobre a inflação, custar bilhões em renúncia tributária e gerar um baixo impacto econômico e social”, explica a Oeste Alexandre Schwartsman, ex-diretor de assuntos internacionais do Banco Central do Brasil e consultor. “Estão querendo propor novamente as mesmas receitas, achando que terão um resultado diferente. Já vimos esse filme. E sabemos como vai acabar: mal.”


O dinheiro que deveria favorecer os pobres acabará ajudando as locadoras | Foto: Divulgação/Localiza Hertz
Paixão desenfreada e trapalhadas políticas

Aliás, a paixão que o Palácio do Planalto tem quando o tema são subsídios apareceu com todo o seu ardor já no momento do anúncio. O vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Geraldo Alckmin (PSB), chegou a noticiar a medida antes mesmo de ter avisado o Ministério da Fazenda. Pego de surpresa, o ministro Fernando Haddad foi obrigado a pedir mais 15 dias para poder entender de onde tirar os recursos prometidos, e só depois disso apresentar oficialmente o programa. Se com os subsídios está repetindo programas econômicos do passado, o governo Lula inovou pelo menos na comunicação. Criando uma nova fórmula: “o anúncio do anúncio”.

A Fazenda teve que frear a empolgação do vice-presidente e de sua equipe, que tinham desenhado uma medida provisória (MP), em aberta violação à Lei de Responsabilidade Fiscal. A qual exige encontrar novas receitas para compensar benefícios desse tipo. 

Se no passado os subsídios permitiram uma alta nas vendas, desta vez o efeito parece ser o oposto. Despencaram

Provavelmente o governo já considera a Lei de Responsabilidade Fiscal letra morta. Mas ela ainda está em vigor. Por sorte das contas públicas brasileiras. E isso obrigou Haddad a reduzir o valor empenhado, passando dos iniciais R$ 8 bilhões cogitados para apenas R$ 1,5 bilhão reservados e R$ 500 milhões liberados. E a deixar bem claro que a MP não é de longo prazo. Frustrando as montadoras, que aguardavam pelo menos 12 meses de extensão. O programa tinha previsão de durar 30 dias. Em menos de duas semanas, os recursos praticamente acabaram. Mostrando mais uma vez a incapacidade de planejamento orçamentário do governo. 

“Até o dia 15 de maio, os emplacamentos eram normais, em linha com a média histórica”, observa Pagliarini. “Só que, com o anúncio do anúncio, desabaram. O mercado parou. No dia 25 de maio, anunciaram o programa, só que sem nenhuma regra, sem nenhuma definição. O mês fechou em 166 mil unidades comercializadas, 16 mil unidades a menos do que a média histórica de 182 mil unidades vendidas em maio. O que era para reforçar as vendas, na verdade, acabou prejudicando o mercado.”


Vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Geraldo Alckmin (PSB), durante reunião com ministro da Fazenda, Fernando Haddad | Foto: Cadu Gomes/VPR
Altos gastos, efeitos nulos, fábricas fechadas 

Como se não bastassem os custos elevados, os benefícios regressivos ou as trapalhadas institucionais, o verdadeiro problema é o resultado da obra. Nulo. Exatamente como sempre foi no passado.

No final de maio, Haddad chegou a declarar que o programa de subsídios seguraria “o fechamento de plantas”. Menos de um mês depois, a Volkswagen anunciou a suspensão da produção de carros no Brasil. Poucas horas depois, a Mercedes-Benz anunciou que encerraria as atividades em Campinas, no interior de São Paulo. Atualmente, pelo menos 13 fábricas já anunciaram paralisações. E outras estariam próximas. 

“Hoje a Volkswagen produz mil carros por dia”, diz Pagliarini. “A Fiat, 3 mil. A Hyundai, 800. Se eles não vendem, os pátios ficam cheios. E acabam forçados a interromper a produção.”

O que é mais surpreendente é que, se no passado os subsídios permitiram uma alta nas vendas, desta vez o efeito parece ser o oposto. Despencaram. Segundo os dados do Registro Nacional de Veículos Automotores (Renavam), a média diária de comercialização de veículos leves e pesados no Brasil até o dia 25 de junho diminuiu 35% na comparação com maio. 

“O programa poderia até ter uma boa intenção, porém foi mal lançado e mal dimensionado”, explicou Geraldo Victorazzo, especialista no mercado de veículos do Instituto AAV e diretor-executivo da Auto Avaliar. “Havia pouca clareza também sobre quem ficaria com os incentivos. E isso gerou um represamento de vendas por causa dos erros no lançamento do programa, em maio. Foi criado um mercado de especulação, seja das pessoas físicas que iam querer comprar barato, seja dos concessionários, no caso dos usados. Todo mundo ficou aguardando os acontecimentos.” 

Segundo o especialista, nos últimos dias de junho poderia aparecer algum aumento dos emplacamentos, mas nem próximo ao que o governo estava esperando. Se os resultados contrariam as expectativas do Executivo, a resposta do Planalto foi ao típico estilo Dilma Rousseff: dobrar a meta.

Na última quarta-feira, 28, Haddad anunciou que serão colocados mais R$ 300 milhões na mesa, como créditos adicionais para o programa. “Ia ser um programa de R$ 1,5 bilhão e agora vai ser um programa de R$ 1,8 bilhão”, disse o ministro em entrevista. Para financiar mais essa gastança, a solução foi aumentar os impostos sobre o diesel a partir de outubro. 

“Essa medida também não terá efeitos. Não serão medidas extemporâneas, de curta duração e com esse volume de recursos que salvarão a indústria automotiva do Brasil”, diz Victorazzo. “Precisamos de políticas estruturais de longo prazo, ou nosso destino será a desertificação industrial”. 


Para financiar mais essa gastança, a solução foi aumentar os impostos sobre o diesel a partir de outubro | Foto: Shutterstock
Problemas crônicos na indústria

Não é novidade para ninguém que o Brasil registra problemas crônicos em sua indústria automotiva. A capacidade produtiva é de cerca de 5 milhões de veículos. Mas em 2022 foram produzidos cerca de 2 milhões de unidades. E 2023 poderá fechar abaixo disso. Além da enorme ociosidade produtiva, o número de empregados no setor passou de 150 mil em 2018 para os atuais 100 mil. 

“Muitas montadoras estão preferindo se localizar em outros países em vez de produzir aqui. O “custo Brasil” é alto demais. A carga tributária e o custo da CLT estão entre os mais elevados do mundo. Sem contar a baixa tecnologia das plantas, as milhares de leis, portarias e regras burocráticas, e a escassez de mão de obra qualificada. Tudo isso impede a industrialização do país”, explica Victorazzo.

Para Pagliarini, esse programa foi tudo o que as montadoras estavam pedindo. “As fabricantes pedem ao governo só uma coisa: previsibilidade”, explica o consultor. “Não querem programas extemporâneos. Quando esses subsídios acabarem, o mercado vai voltar ao ritmo anterior. O crescimento real, sólido, substancial, vem do crescimento da economia, não de dinheiro pontual.” 

Subsídios públicos para a indústria automotiva na contramão da história

Existe também uma mudança cultural. Cada vez menos pessoas estão interessadas em ter um carro próprio. Falta de estacionamento nas cidades, manutenção cada vez mais complicada e altos custos, além de utilização relativamente baixa, levam muitos brasileiros, especialmente os jovens, a não se interessar em adquirir um veículo. Entre 2015 e 2021, o número de pessoas com idade entre 18 e 30 anos habilitadas para dirigir caiu 10,8% em todo o Brasil. 

“Essa é uma tendência mundial, mas no Brasil está mais acentuada”, salienta Victorazzo. “Hoje devemos pensar mais em mobilidade de várias formas. Carros por assinatura, terceirização de frota, carro compartilhado, aplicativos, entre outros. Tudo isso faz com que a necessidade de ter um carro para cada CPF diminua. Mas nada justifica o tamanho da queda do mercado brasileiro. É uma questão estrutural nossa”. 

Sem contar que hoje no Brasil o maior mercado automotivo não é dos carros novos, e sim dos usados. A cada veículo zero-quilômetro vendido, outros cinco ou seis seminovos são comercializados. Mais uma razão pela qual a política de incentivos não terá os efeitos esperados. 

Por último, existe a questão ambiental, já que o governo Lula se comprometeu frente à comunidade internacional a defender o meio ambiente. Participou da COP27 no Egito antes mesmo de tomar posse. Embarcou Marina Silva como ministra de seu governo. Fez revogaço de políticas ambientais do governo anterior. Mas, na primeira ocasião, subsidiou carros movidos a combustíveis fósseis. Favorecendo com dinheiro público o aumento da emissão de carbono na atmosfera. 

O programa de subsídios do governo federal relembra a famosa série animada Pinky e o Cérebro. Todos os episódios são caracterizados pela famosa pergunta: “Cérebro, o que você quer fazer esta noite?”. E Cérebro responde: “A mesma coisa que fazemos todas as noites, Pinky… Tentar conquistar o mundo”. No caso dos governos do PT, essa teimosia é focada na tentativa de subsidiar a indústria. Mas, exatamente como no caso do Cérebro, o resultado é sempre o mesmo: fracasso total.


Hoje, no Brasil, o maior mercado automotivo não é dos carros novos, e sim dos usados | Foto: Shutterstock

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Carlos Cauti, Revista Oeste