Ilustração de um código genético | Ilustração: Shutterstock
A medicina entra no território da cura do câncer, da paraplegia, da obesidade e de qualquer tipo de vício
ONew York Times Magazine falou em uma “Era de Ouro da medicina” em artigo recente. Ela está chegando às farmácias e hospitais ou em fase final de testes. As perspectivas são matéria de utopia. E estão cada vez mais próximas de nós.
mRNA
A sigla significa “RNA mensageiro”. O RNA é o chamado ácido ribonucleico, parte do fluxo de informações genéticas de cada pessoa. O mRNA é (entre outras coisas) a “mensagem” que os genes transmitem às células. Vacinas à base de mRNA têm o potencial de acabar com doenças como aids, tuberculose, zica, infecções respiratórias e vários tipos de câncer. Experiências estão sendo realizadas nas repúblicas africanas de Gana e Nigéria para eliminar a malária. Espera-se que vacinas à base de mRNA possam reduzir a contaminação por dengue em 80%.
Vacinas à base de mRNA estão sendo usadas numa das formas mais violentas de câncer: o pancreático. Doentes de um hospital em Mainz, na Alemanha, sem maiores esperanças de sobrevida, se entregaram à experiencia da empresa BioNTech. O resultado foi no mínimo promissor: metade dos pacientes respondeu positivamente, e a doença não voltou aos que haviam sido operados para a retirada dos tumores.
Artigo de Jessica Hamzelou para o MIT Technology Review esclarece a diferença entre vacinas comuns e vacinas à base de mRNA: “Essas vacinas não dependem da injeção de parte de um vírus em uma pessoa, como muitas outras vacinas fazem. Em vez disso, elas fornecem um código genético que nosso corpo pode usar para produzir a parte relevante da proteína viral por conta própria. Todo o processo é muito mais rápido e simples e evita a necessidade de cultivar vírus em laboratório e purificar as proteínas que eles produzem, por exemplo. […] A ideia é desencadear uma resposta específica do sistema imunológico, uma resposta projetada para atacar as células cancerígenas no corpo”.
ADC
Outro tipo de medicação — conhecido como ADC, sigla em inglês de “conjugado anticorpo-droga” — mistura uma droga citotóxica com um anticorpo. O tradicional tratamento por quimioterapia ou radioterapia procura matar as células cancerosas por meio de uma intervenção externa. A nova escola de vacinas procura usar o sistema de imunização do próprio corpo do paciente para eliminar os tumores.
Casos de sucesso são espantosos, segundo outra matéria do New York Times. Um desses casos é o do ex-presidente Jimmy Carter. Em 2015, aos 91 anos, Carter foi declarado em estado terminal. Estava com um melanoma (câncer de pele), e a metástase havia chegado ao seu cérebro. O óbito seria questão de meses ou semanas. Mas ele foi tratado com uma droga imunoterápica chamada Keytruda — e oito anos depois permanece vivo, aos 98 anos.
A Escola de Medicina da Universidade de Yale usou imunoterapia à base de ADC em um grupo de 18 pessoas com câncer retal. O resultado foi completamente inédito na história da medicina: remissão — cura total, ainda que temporária — em todos os 18 casos. O câncer simplesmente sumiu de todos os pacientes. Eles pareciam condenados a tratamentos invasivos e agressivos — e simplesmente tiveram alta.
“Um ADC é como uma bomba inteligente que sabe como se direcionar a um alvo sem causar muito dano colateral”, escreveu a jornalista de ciências Kate Pickert. “Os pacientes frequentemente podem permanecer em tratamento com ADC por um longo tempo, até mesmo anos ou décadas, ao contrário da quimioterapia regular, que muitas vezes só pode ser administrada por um curto período de tempo porque é muito agressiva para o corpo.”
CRISPR
Outro campo de expansão da medicina é tão promissor quanto polêmico. O centro dessa tecnologia responde pela sigla CRISPR, de clustered regularly interspaced short palindromic repeats. A tradução não esclarece muita coisa para nós, leigos: “repetições palindrômicas curtas agrupadas e regularmente interespaçadas”.
O CRISPR basicamente “edita” um DNA. O site do Innovative Genomics Institute cita dois exemplos de ação: 1) “o pesquisador altera células no laboratório para torná-las boas em combater doenças. O médico, então, introduz essas células alteradas no paciente. Uma vez no corpo, as células alteradas matam ou substituem as células defeituosas. O pesquisador pode, então, consertar as células defeituosas no laboratório”; 2) “o médico introduz as células consertadas no paciente. As células consertadas convivem com as células defeituosas lado a lado e funcionam bem o suficiente para tornar o paciente saudável”.
Outra possibilidade é a germline editing, ou “edição germinativa”. Imagine um óvulo fertilizado contendo determinada sequência de DNA que pode provocar uma doença fatal no recém-nascido. Segundo o material de divulgação do Innovative Genomics Institute, “os pesquisadores introduzem ferramentas CRISPR nesse ovo. As ferramentas editam a sequência de DNA causadora da doença e a transforma em uma sequência saudável. Como resultado, o óvulo fertilizado se desenvolve em um adulto saudável. Todas as células desse adulto passam a ter as alterações de DNA feitas no óvulo fertilizado. Essas alterações são, então, transmitidas à descendência do adulto”.
Parece perfeito. Então por que a polêmica? O mesmo mecanismo que hoje cura uma doença terminal num bebê pode no futuro fazer com que os pais escolham entre ter um menino ou uma menina, por exemplo. Ou interfiram em características raciais. Ou modifiquem os genes para que a criança se torne o que eles (ou o Estado) desejarem. A edição genética pode, enfim, ser muito útil, mas precisa ser acompanhada de princípios éticos nem sempre possíveis.
Implante neural
A ideia por trás dessa tecnologia é que, mesmo quando uma pessoa está paralisada por uma doença ou acidente, seu cérebro continua dando ordens. Um caso emblemático foi o do físico Stephen Hawking, vítima de esclerose lateral amiotrófica (ALS, na sigla em inglês). Nos seus últimos anos de vida, Hawking só podia se comunicar usando movimentos faciais, por meio dos quais escolhia uma letra de cada vez, gerando mensagens que eram transmitidas a um sintetizador de voz. Como lembrou a revista Newsweek, para “falar” a frase “eu espero que minha experiência ajude outras pessoas”, Hawking demorava cinco minutos.
O neurocirurgião Eddie Chang (da Universidade da Califórnia, em São Francisco) desenvolveu o projeto do que foi chamado de “neuroprótese da fala”. A prótese consistia em um chip implantado no cérebro do paciente — no caso, um homem que havia sofrido um AVC grave e era incapaz de dizer qualquer coisa.
Durante o implante, o homem, de menos de 40 anos, ficou pensando constantemente nas palavras “water”, “family” e “good”, até que fosse localizado no seu cérebro o centro da fala. Um chip foi implantado nesse local. Os desejos de fala do paciente passaram a ser enviados a um computador, que os transformava em palavras escritas, as quais eram convertidas em som.
Imagine uma pessoa tetraplégica. Ela “veste” um exoesqueleto (uma espécie de armadura de material leve), e seu cérebro lança o comando “andar para a frente”. O chip implantado capta a mensagem e a remete para o computador do exoesqueleto, que passa a caminhar
Em termos de velocidade, a prótese inventada por Chang ainda apresenta resultados modestos: 18 palavras por minuto, com margem de erro de 75%. Mas seu paciente/cobaia estava efetivamente falando através do computador. E essa performance só tende a melhorar, segundo ele declarou à Newsweek: “Nós estamos fazendo um progresso significativo, mais acurado e com um grande vocabulário”.
A “neuroprótese” não deve se limitar à fala. O empresário Elon Musk criou a empresa NeuraLink para, segundo o site oficial, “criar uma interface cerebral generalizada para restaurar a autonomia daqueles com necessidades médicas não atendidas hoje e desbloquear o potencial humano amanhã”. O mesmo sinal que envia uma palavra (no invento do professor Chang) pode enviar os comandos do movimento dos membros.
Imagine uma pessoa tetraplégica. Ela “veste” um exoesqueleto (uma espécie de armadura de material leve), e seu cérebro lança o comando “andar para a frente”. O chip implantado capta a mensagem e a remete para o computador do exoesqueleto, que passa a caminhar. Isso ainda não se realizou completamente. Mas a empresa já produz chips implantáveis que se comunicam com computadores e celulares. Para muitas tarefas, é tudo de que precisamos.
Semaglutide
Muitos avanços na medicina acontecem por acidente, e o Viagra é um exemplo clássico. A revista Atlantic contou uma história semelhante protagonizada pelo medicamento Bimagrumab, produzido pelo laboratório Novartis. A droga era destinada a tratar problemas musculares, especialmente em idosos. Não funcionou.
Mas os cientistas descobriram que as pessoas que serviram de cobaia estavam perdendo gordura corporal. Em 2017, o remédio foi relançado para pacientes com obesidade e diabetes. O resultado foi inédito na história da medicina: os usuários perderam 21% da gordura e ainda ganharam 4% de massa muscular.
Outro remédio antigordura, o semaglutide (mais conhecido como Ozempic) virou best-seller especialmente entre estrelas de Hollywood (e de redes sociais). Mas a droga escondia outra surpresa. A Atlantic conta a história de Victoria Rutledge, que era uma viciada compulsiva, a princípio em álcool. Parou de beber e substituiu a compulsão por comida e compras. Era capaz de gastar, numa única saída, US$ 500 (aproximadamente R$ 2,5 mil) em doces, que lotavam seu refrigerador.
Então Rutledge passou a usar um remédio chamado Wegovy, uma espécie de genérico do semaglutide. Seu objetivo era queimar gordura. Mas ela passou a comer com menos ansiedade. E começou a entrar em lojas e sair apenas com o que estava precisando. Sua compulsão por compras sumiu. E ela não sentiu vontade de voltar a beber para compensar.
Assim, descobriu-se que boa parte dos que consumiam o semaglutitude estava se livrando não só do peso, como de comportamentos movidos pela ansiedade, como beber, fumar e roer unhas. Ou seja, aparentemente estava inventado (também sem querer) um remédio antivício.
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Revista Oeste