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Tornar Bolsonaro inelegível é aplicar a ele o que foi omitido na condenação de Dilma quando, à revelia da Constituição, ela não perdeu os direitos políticos
Orelator Benedito Gonçalves teve imenso trabalho; precisou de 382 páginas para demonstrar a culpa de Bolsonaro em crime eleitoral de abuso de poder político e econômico. Quase o dobro do número de páginas de O Processo, de Franz Kafka. O cerne da questão é a confiabilidade das urnas sem comprovantes impressos dos votos digitais, tópico apresentado a embaixadores estrangeiros. O processo brasileiro vem de acusação do PDT, partido criado por Leonel Brizola, que em 1982 botou a boca no mundo quando percebeu que a contagem informatizada dos votos, feita pela Proconsult, contratada pelo TRE, poderia conduzir à vitória de Moreira Franco. A denúncia do risco de alteração dos resultados teria interrompido um processo de fraude e garantido a Brizola o governo do Rio de Janeiro. O episódio serviu para deixar o PDT com um pé atrás em relação à contagem eletrônica.
Em 2001, o PDT de Brizola uniu-se ao projeto do senador Roberto Requião (PMDB-PR) pelo comprovante do voto. Virou lei sancionada por FHC. Mas a Justiça Eleitoral pressionou, e a lei foi revogada em 2003. Em 2009, os deputados Flávio Dino e Brizola Neto propuseram nova lei de comprovante, que foi aprovada e sancionada por Lula, mas revogada pelo Supremo. Projeto do deputado Bolsonaro foi aprovado em 2015. Dilma vetou, e o veto foi derrubado por 71% dos congressistas. No entanto, o Supremo suspendeu a lei antes das eleições. Depois, declarou-a inconstitucional. Em 2021 ainda se voltou ao assunto, com o apoio do PDT de Carlos Lupi e Ciro Gomes, mas acabou arquivado. Agora é o motivo da condenação de Bolsonaro no TSE, provocada por ação movida, ironicamente, pelo PDT. É questão atualíssima, já que no ano que vem teremos eleições municipais, e é preciso perguntar se ainda não haverá comprovante.
O PDT denunciou Bolsonaro por ter convidado embaixadores credenciados no Brasil para uma conversa no Palácio da Alvorada. A conversa versava sobre riscos da contagem eletrônica pela ausência de um comprovante impresso do voto digital. Se a denúncia tivesse sido feita por outro partido, não seria de estranhar. Mas partiu do PDT, que teria tudo para honrar a memória de seu líder e nunca mais querer o risco de um caso como o Proconsult. Embaixadores que estiveram na reunião com Bolsonaro ficaram surpresos com a denúncia do PDT. Alguns me disseram que não viram crime algum na atitude do então presidente da República. Que eles, embaixadores, atenderam ao convite pelo mesmo motivo que os levou a aceitar ir ao TSE, 48 dias antes, para ouvir o então presidente da Justiça Eleitoral, Edson Fachin, expressar suas preocupações sobre o reconhecimento dos resultados da eleição presidencial. Entre as missões desses diplomatas está acompanhar o sistema de voto de um dos maiores eleitorados do mundo, num país de grande importância estratégica. É tarefa dos embaixadores relatar a seus governos o andamento de um processo eleitoral, para que seja avaliada a legitimidade dos resultados. Assim, se houve crime eleitoral no encontro do Alvorada, os embaixadores seriam todos cúmplices.
Os 51 milhões de eleitores de Bolsonaro no primeiro turno da última eleição são cassados no seu direito de votar de novo no candidato preferido
Sobre o julgamento no TSE, bolsonaristas escrevem nas redes sociais que ficou decidido fazer Bolsonaro carregar a cruz e ser crucificado. Torná-lo inelegível por oito anos é aplicar a ele o que foi omitido na condenação de Dilma quando, à revelia do parágrafo único do artigo 52 da Constituição, ela não ficou inelegível por oito anos, no julgamento do Senado, conduzido pelo presidente do Supremo.
Agora, um crime de opinião — que não existe, pois a Constituição garante a livre manifestação do pensamento, vedado o anonimato (artigo 5º, inciso IV), e isso vale para todos, inclusive para o presidente da República. Pode um tribunal punir alguém por manifestar seu pensamento sobre urnas eletrônicas? A punição legítima, no caso de um político, vem da origem do poder, nas urnas. Se Bolsonaro tivesse desagradado os eleitores ao compartilhar suas preocupações com embaixadores, os eleitores o puniriam. Com Dilma, o descumprimento da Constituição foi corrigido pelos eleitores de Minas. Agora, os 51 milhões de eleitores de Bolsonaro no primeiro turno da última eleição são cassados no seu direito de votar de novo no candidato preferido.
Por medo da força eleitoral de Bolsonaro, torná-lo inelegível, “crucificá-lo”, como dizem os bolsonaristas, pode converter num cristo alguém que já é messias no nome. Como aconteceu com a facada, pode turbinar a força política de Bolsonaro, como um líder que não pode receber voto, mas ganha poder de voto ainda maior. O resultado pode ser um ganha-ganha para o ex-presidente. Não podendo ser eleito, e já tendo eleito tantos, depois de crucificado recebe ressurreição como Grande Eleitor.
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Alexandre Garcia, Revista Oeste