Alexandre de Moraes | Foto: Montagem Revista Oeste/STF?SCO
O presidente do TSE é o mais poderoso sem-voto da política brasileira
Ah, Moraes!, deve estar exclamando em silêncio, a cada mirada no espelho, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, grávido de admiração pela figura que vê. Ele era Alexandre quando promotor de Justiça, secretário municipal da prefeitura paulistana, secretário estadual do governo Geraldo Alckmin e ministro de Estado durante a passagem de Michel Temer pela Presidência da República. Só depois de premiado com a toga pelo chefe, eternamente grato ao secretário de Segurança Pública que esbanjara discrição nas investigações do caso do hacker que invadiu o celular da primeira-dama Marcela Temer, o prenome foi demitido pelo sobrenome. Perto dos 50 anos, Alexandre tornou-se Moraes.
E que Moraes!, deve estar suspirando de meia em meia hora o advogado formado na faculdade do Largo de São Francisco. Em março de 2017, ao pousar no Pretório Excelso, o único ministro indicado por Temer, o Breve parecia condenado a um longo estágio na igrejinha dos devotos do agora decano Gilmar Mendes, então governador-geral do Supremo. Neste último domingo de outubro, o discípulo foi homenageado pelo mestre, que considerou “fundamental” o papel desempenhado pelo TSE no ano eleitoral de 2022. TSE é o codinome do ministro que o preside, e Moraes roubou a cena pertencente a candidatos ao transformar-se no mais poderoso. Encerrou a campanha transformado no sem-voto mais poderoso da história política brasileira.
Getúlio Vargas criou o TSE quatro anos depois da Revolução de 1930 para cumprir uma das promessas dos vitoriosos: o sistema judiciário ganharia uma ramificação encarregada de garantir a idoneidade das eleições, desmoralizadas pela fraude epidêmica. Como o advento do Estado Novo oficializou a ditadura, não houve eleições a vigiar até a queda de Getúlio Vargas, a restauração da democracia e a escolha pelo voto do presidente Eurico Dutra. (Sobravam mentiras nos palavrórios de palanque, mas isso só viraria problema muitos anos depois, quando a inverdade vestiu fraque e foi rebatizada em inglês: fake news.)
A vocação para o arbítrio manifestou-se já em maio de 1947, quando o TSE proibiu a existência do Partido Comunista Brasileiro. O surto de prepotência expandiu-se em janeiro de 1948, com a cassação dos mandatos do senador Luiz Carlos Prestes e dos deputados eleitos pelo partido proscrito. Nos anos seguintes, a Justiça Eleitoral pareceu dormir o sono dos desnecessários até a eleição presidencial de 2014. Quatro anos depois, o TSE deixou de ser figurante para sair à caça do protagonismo. Ganhou espaços no noticiário em 2018, já escancarando a antipatia por Jair Bolsonaro. Desde janeiro de 2019, o Supremo Tribunal Federal vem infernizando a vida do presidente da República. E o seu puxadinho eleitoreiro se transformou no mais belicoso inimigo do chefe do Poder Executivo.
O grupo de sete integrantes do TSE é composto de três ministros do STF, dois ministros do Superior Tribunal de Justiça e dois advogados providos de notável saber jurídico e reputação ilibada. O presidente e o vice têm de ser titulares do Timão da Toga. O corregedor-geral é indicado pela trinca do Supremo. Em 2022, sucederam-se na chefia do tribunal os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Alexandre de Moraes. Não havia perigo de melhorar. Barroso foi ao Congresso para explicar aos parlamentares que o poder não se ganha; toma-se. Fachin inventou a Lei do CEP para soltar Lula da cadeia.
Moraes acredita ter chefiado a mais democrática das eleições realizadas desde a primeira escolha do primeiro líder de uma tribo de homens das cavernas. Foi uma das mais sujas da história do Brasil
Nenhum superou Moraes em matéria de onipresença, onipotência e onisciência. O dono do TSE cruzou o ano orientado pela frase formulada por Carlos Lacerda quando Juscelino Kubitschek anunciou em 1954 que pretendia disputar a Presidência da República: “Juscelino não pode ser candidato. Se for candidato, não pode ser eleito. Se for eleito, não pode tomar posse. Se tomar posse, não pode governar”. Para tanto, Moraes prendeu deputados, ressuscitou a figura do preso político, tentou transformar em procurado pela Interpol um jornalista que ousou contestar o STF, exumou a censura — fez o diabo para que Lula voltasse ao poder.
Na tarde de 30 de outubro, logo depois do encerramento da votação, o atual presidente do tribunal convocou uma entrevista coletiva para divulgar o balanço das atividades mais recentes e para aplaudir-se pelo próprio desempenho. Ficou tão exultante que quase exibiu o sorriso banido do rosto desde a chegada ao STF. Não conseguiu ir tão longe. Foi com a carranca de festa (usada quando comemora o aniversário de algum parente ou o cumprimento de mais um mandado de prisão) que o chefão do TSE divulgou as façanhas protagonizadas nas 36 horas anteriores, inteiramente consumidas pelo infatigável combate a fake news.
A poucos dias do pleito, por decisão unânime, os seis doutores em votos e urnas que completam o tribunal resolveram facilitar as ofensivas e ataques pelos flancos planejados pelo comandante: Moraes foi dispensado de aguardar o aparecimento de alguma queixa ou denúncia para entrar em ação. Também se dispensou de aguardar o aval do plenário para ordenar a remoção de qualquer coisa que o desagradasse. Bastava enxergar algum vestígio de tapeação e decolava rumo ao espaço outro hediondo crime eleitoral. No balanço, contudo, fez questão de atribuir ao TSE proezas que protagonizou sozinho.
O surpreendente surto de generosidade também aconselhou o caçador de delinquências digitais a evitar o uso exagerado da primeira pessoa do singular. Acabou derrapando no plural majestático ao relatar o que andou fazendo. Não foi pouca coisa. “O TSE determinou a retirada de 354 posts impulsionados que disseminavam fake news em diversas plataformas digitais, que rapidamente acataram o pedido”, informou. “Também decidimos desmonetizar sete sites e remover 701 notícias fraudulentas.” Depois da pausa, e de sobrevoar a turma da imprensa com um olhar superior, o juiz mais loquaz do planeta, que só fala fora dos autos, engatou a quinta marcha e acelerou: “O TSE suspendeu 15 perfis de grandes propagadores de fake news”.
Para justificar o castigo, puniu o idioma com um desfile de redundâncias: “Essas mensagens são consideradas crimes eleitorais, conforme disposto no artigo 296 do Código Eleitoral, uma vez que promovem desordem eleitoral que pode prejudicar os trabalhos eleitorais”. Outra pausa e o fecho superlativo: “Também banimos cinco grupos do Telegram que envolviam a participação de 580 mil pessoas”. Tudo isso e mais um pouco em apenas 36 horas. Menos de dois dias. Haja produtividade.
Amparado em cifras do mesmo porte, Alexandre de Moraes acredita ter chefiado a mais democrática das eleições realizadas desde a primeira escolha do primeiro líder de uma tribo de homens das cavernas. Foi uma das mais sujas da história do Brasil, deformada pelo ativismo judicial, por decisões arbitrárias, pela parcialidade descarada, pelo cinismo sem camuflagens, por sucessivos socos e pontapés na Constituição, pelo rebaixamento da Justiça Eleitoral a integrante da inverossímil frente ampla composta hegemonicamente de gente que deveria mandar prender e gente que merecia estar engaiolada.
Moraes festeja o aniversário em 13 de dezembro de 1968, dia em que se consumou o parto do Ato Institucional nº 5. Data de nascimento é destino.
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Revista Oeste