Frank James é colocado em um carro de polícia após ser formalmente acusado pelo tiroteio no metrô de Nova York.| Foto: Sarah Yenesel/EFE/EPA
Faz pouco mais de três meses que, em artigo que lhe rendeu ataques virulentos, o antropólogo Antonio Risério denunciou na Folha de S.Paulo, com uma pletora de fatos, o aumento vertiginoso do racismo de negros contra não negros nos EUA e no Brasil. Partindo da própria redação do jornal paulistano – uma espécie de quartel-general de extremistas identitários –, choveram pedidos pela cabeça do articulista. Acovardado, o jornal concedeu espaço generoso para os artífices da campanha de assassinato de reputação movida contra Risério, mas, com a falsa desculpa de que o assunto estava encerrado, negou à vítima o direito de se defender. Rasgava-se, assim, a máscara de pluralista com que a Folha pretendia esconder a sua carranca autoritária e pró-identitária.
Assim como o meu colega antropólogo, venho analisando o fenômeno do neorracismo identitário já há alguns anos. Daí que, na minha coluna de 19 de janeiro, eu tenha comentado o seguinte sobre o caso:
“Risério tem razão. O que temos visto surgir nos EUA – e ao contrário do que alegam os extremistas identitários, que acusam o autor da prática de cherry-picking – é quase uma epidemia de ataques racistas cometidos por ‘negros’ contra membros de outras etnias (...) Contrariamente ao que aconteceria se os papéis de vítima e agressor se invertessem, o fenômeno não causa escândalo nem indignação. Frequentemente, nem sequer é noticiado. Tudo se passa como se tivéssemos, nesse caso, uma espécie de racismo permitido.”
Numa sociedade tão marcadamente racializada, na qual se fala o tempo todo em “história negra”, “música negra”, “arte negra”, “literatura negra” etc., parece que a única entidade interditada pelos meios de comunicação é o crime racial cometido por negros contra representantes de outras etnias
“O racismo permitido”, aliás, é o título de um outro artigo meu, no qual mostro que o discurso de ódio contra brancos tornou-se mainstream na cultura americana contemporânea, e que dele decorrem eventos cada vez mais frequentes – e tanto mais ocultados pela mainstream media – de violência racial cometida por supremacistas negros. Também no artigo “A violência racial normalizada” comento sobre o livro White Girl Bleed a Lot: The Return of Race Riots to America and How the Media Ignore It, em que o jornalista Colin Flaherty elenca e analisa a ocorrência de centenas de ataques perpetrados por negros contra brancos e representantes de outras etnias em várias cidades norte-americanas ao longo dos últimos anos.
Contrastando vídeos enviados ao YouTube e depoimentos de vítimas com a cobertura jornalística e o discurso oficial das autoridades, Flaherty denuncia a ocultação deliberada do componente racial por parte da mídia e do poder público. Numa sociedade tão marcadamente racializada, na qual se fala o tempo todo em “história negra”, “música negra”, “arte negra”, “literatura negra” etc., parece que a única entidade interditada pelos meios de comunicação é o crime racial cometido por negros contra representantes de outras etnias.
O duplo padrão fica ainda mais evidente quanto pensamos nos muitos casos em que, atuando como mera porta-voz do movimento identitário, e a fim de sedimentar na opinião pública a imagem dos negros como vítimas quintessenciais, a imprensa simplesmente inventou racismo onde não havia (veja, sobre o ponto, essa minha coluna de julho de 2020). Um caso emblemático é uma matéria publicada no portal G1 em 12 de setembro de 2014, em cuja chamada se lê: “Mais um negro é morto pela polícia em NY”.
Lendo o texto da reportagem, descobre-se que um homem negro esfaqueara um jovem judeu dentro de uma sinagoga no Brooklyn. Recusando-se a entregar a faca e lançando-se sobre os policiais, o agressor acabou baleado, vindo a falecer no hospital. Ou seja: embora os policiais tenham agido primeiro em defesa da vítima esfaqueada, e, em seguida, em legítima defesa da própria vida, os militantes da redação julgaram conveniente inverter as posições de vítima e agressor, dando ênfase desnecessária ao componente racial que nada tinha a ver com o caso, e induzindo o leitor – mediante o uso do pronome indefinido “mais” – a concluir que a polícia de Nova York é useira e vezeira em matar negros por motivações racistas. Eis um primor de desinformação em prol de uma agenda política.
Com tudo isso em mente, e já acostumado a buscar a informação verdadeira por detrás das barricadas montadas pelos gatekeepers do “consórcio” midiático, não me espantei quando alguns poucos jornalistas independentes – a exemplo de Andy Ngô – começaram a publicar as mensagens racistas postadas por Frank James, o supremacista negro e simpatizante do Black Lives Matter (BLM) responsável pelo mais recente atentado terrorista no metrô de Nova York. Mensagens racistas como essa: “Ó, Jesus Negro, por favor mate todos os brancos”. Ou essa: “Os brancos filhos da puta que eu quero matar, sabe?, quero muito matá-los por serem brancos”. Ou ainda essa: “Brancos e negros não devem manter nenhum contato. Não devem sequer ocupar o mesmo hemisfério”.
Obviamente, o “consórcio” midiático dedicou-se ao máximo à missão de omitir o componente racial do crime, tanto quanto, nos casos em que a vítima é negra, se empenha em introduzir o componente racial mesmo quando inexiste. O portal G1, por exemplo, até fez referências a algumas postagens de James, reduzindo-as, todavia, a menções aos “sem-teto” e ao “prefeito de Nova York”. Já a CNN Brasil tratou de dissolver a especificidade racial do caso na afirmação genérica sobre um aumento da criminalidade em Nova York. E o Poder 360 foi ainda mais longe, virando a realidade de ponta-cabeça e descrevendo as mensagens racistas do terrorista como “vídeos críticos ao racismo”. Bem, se clamar a Deus pela morte de todos os brancos é uma crítica ao racismo, nem quero imaginar como seria o seu elogio.
Mas, retomando o fio, digo que não me espantei com o evento porque o ataque cometido por James é apenas mais um episódio numa série de casos muito recentes, todos motivados pela mesma ideologia racista. Recordemos apenas dois deles.
Em novembro de 2021, seis pessoas foram mortas num desfile natalino em Waukesha, Wisconsin, quando o terrorista Darrell Edward Brooks jogou o seu carro em cima da multidão de espectadores. As redes sociais de Brooks também eram repletas de mensagens de nacionalismo negro, endosso do movimento BLM e ofensas a brancos e judeus. Em postagem de novembro de 2015, o terrorista chegava a reproduzir um pretenso discurso de Adolf Hitler acompanhado do seguinte comentário: “Hitler sabia quem eram os verdadeiros judeus”.
Em abril de 2021, um homem jogou o seu veículo contra uma barreira policial montada em frente ao Capitólio, em Washington D.C. Ato contínuo, o agressor partiu com uma faca em punho para cima dos dois policiais em serviço, ferindo um deles mortalmente antes de ser abatido. O homem era Noah Green, militante da Nação do Islã, movimento supremacista negro liderado pelo notório antissemita Louis Farrakhan, tido por Green como seu “pai espiritual”.
O ataque cometido por James no metrô de Nova York é apenas mais um episódio numa série de casos muito recentes, todos motivados pela mesma ideologia racista
Nada disso é obra do acaso. O discurso de ódio racial antibranco tem sido propagado diariamente dentro das escolas e universidades americanas. Uma vez assimilado por mentes doentias, ou já inclinadas à criminalidade, não surpreende que, mais dia menos dia, resulte na prática de violência racista. E não são apenas negros ou militantes do movimento negro os únicos suscetíveis a introjetar essa perversa lógica racialista e a nutrir um sentimento de vingança.
Muitos no Brasil hão de lembrar do adolescente sul-coreano Cho Seung-hui, que, em abril de 2007, matou 32 pessoas e feriu outras 25 no Instituto Politécnico da Virgínia, no episódio conhecido como o “Massacre de Virginia Tech”. Como é natural nesses casos, o estado de choque inicial, subsequente à tragédia, deu lugar à busca por explicações. Quem era Cho Seung-hui? O que pode tê-lo levado a praticar aquela monstruosidade? Teria sido possível, antes da chacina, notar algum indício de psicopatia a partir do comportamento habitual do atirador?
Naquele contexto, foram divulgadas peças teatrais escritas por Cho para suas aulas de inglês. O conteúdo era perturbador: uma mãe brandindo uma serra elétrica, um garoto tentando assassinar seu padrasto com uma barra de cereal empurrada em sua garganta, adolescentes imaginando como matar o professor que os havia estuprado, e assim por diante. Depois da divulgação do material, surgiram questionamentos sobre o porquê de a escola não ter percebido, já naquele momento, a existência de um distúrbio psíquico grave no aluno. Um tal diagnóstico poderia ter evitado o massacre?
Muitos, dizia eu, se lembram de Cho Seung-hui. Mas quase ninguém ouviu falar à época de Nikki Giovanni, professora de Cho na Virginia Tech. Por ser uma das mais respeitadas professoras de Literatura Inglesa da escola, Giovanni foi escolhida para proferir o discurso em homenagem às vítimas do massacre. “Nós somos Virginia Tech!” – bradou a professora, diante de uma plateia emocionada.
Além de professora de inglês, Nikki Giovanni é poetisa e militante histórica do movimento negro, em sua vertente mais radical. No antebraço esquerdo, exibe uma tatuagem com os dizeres Thug Life (algo como “vida bandida”), feita em homenagem ao rapper Tupac Shakur, assassinado por outros rappers num tiroteio em 1997. Para Giovanni, Shakur (um gangster a quem ela chama carinhosamente de “Pac”) seria um mártir do movimento pelos direitos civis, situado no mesmo nível de Martin Luther King ou Emmett Till.
Em vários de seus poemas, a professora de Cho Seung-hui dedica-se a incitar o ódio racial contra brancos e judeus. Num deles, por exemplo, intitulado The True Import of Present Dialog, Black vs. Negro, lemos o seguinte: “Não temos de provar que somos capazes de morrer. Temos de provar que somos capazes de matar (...) ‘Crioulo’ [nigger], você sabe matar? Você sabe matar um branquelo [honkie], ‘crioulo’? (...) Você sabe derramar sangue? É capaz de envenenar? Sabe esfaquear um judeu? Sabe matar, hein? (...) Você sabe atropelar um protestante com o seu El Dorado 68? (...) Você sabe urinar numa cabeça loira? Sabe cortá-la fora?”
O discurso de ódio racial antibranco tem sido propagado diariamente dentro das escolas e universidades americanas. Uma vez assimilado por mentes doentias, ou já inclinadas à criminalidade, não surpreende que, mais dia menos dia, resulte na prática de violência racista
Note-se que o estilo é curiosamente parecido com aquele utilizado por Cho Seung-hui na fala de um de seus personagens: “Devo matar Dick. Devo matar Dick. Dick deve morrer. Matar Dick (...) Você acha que eu não sei matá-lo, Dick?” Noutro poema, Giovanni celebra o espírito revolucionário, imaginando um novo brinquedo para crianças negras, um kit chamado “Burn Baby”, que as ensinaria a montar um coquetel Molotov. Noutro ainda, a poetisa abre o coração: “Ocorreu-me que, talvez, eu não deva mais escrever, mas limpar a minha arma e conferir o meu estoque de querosene”.
Pergunto-me quantas vezes o atirador Cho Seung-hui terá sido exposto na Virginia Tech a esse tipo de retórica? Quantas vezes, por exemplo, terá ouvido falar em “privilégio branco”? Difícil saber ao certo, mas uma rápida consulta no website da escola revela que, só ali, a expressão aparece mais de 440 vezes.
Obviamente, os poemas de Nikki Giovanni não podem ser tomados como causa imediata do massacre, perpetrado por alguém com claros distúrbios mentais. Mas é certo também que o adolescente sul-coreano encontrou nesse e em outros discursos similares um combustível a mais para o seu ódio. Como observou sobre o caso o professor Olavo de Carvalho, então o único na imprensa brasileira a destacar esse aspecto do problema: “Enfie todo esse ódio na mente de um maluco e ele só não sairá matando gente se estiver dopado”.
Ora, se nada tem a ver com esse tipo de violência a ideologia radical de Giovanni e companheiros de militância, menos ainda o teriam o sistema capitalista, o conservadorismo, a fé cristã, o comércio de armas, Donald Trump ou Jair Bolsonaro, tradicionais bodes expiatórios recorrentemente lembrados por ocasião de episódios como o da Virginia Tech. Afinal, a relação de causa e efeito é bem mais direta no primeiro que no segundo caso. É muito mais difícil caracterizar os atentados acima mencionados como, digamos, uma reação às “injustiças sociais” inerentes ao sistema capitalista do que como resposta positiva aos apelos poéticos de uma Nikki Giovanni.
“Você sabe matar um branquelo, ‘crioulo’?” – pergunta Giovanni. E Frank James responde afirmativamente: “Sim, senhora”. “Você sabe atropelar um protestante com o seu El Dorado 68?” – torna a perguntar Giovanni. E, dessa vez, é Darrell Edward Brooks quem responde: “Sim, eu sei”. “Sabe esfaquear um judeu?” E responde agora o terrorista da sinagoga no Brooklin: “Sim, professora. Mereço nota dez”.
Nos dias de hoje, enquanto um discurso racista antinegro seria amplamente exposto e universalmente repudiado – e assim deve ser –, a retórica antibranca é não apenas acobertada, como incentivada e naturalizada
Não é por acaso que, muito embora nossa imprensa continue agindo como se estivéssemos em pleno Mississippi da década de 1920, Walter Williams, o brilhante economista negro falecido em 2020, tenha afirmado categoricamente que, hoje, “a maioria dos ataques raciais é cometida por negros”. Compreende-se, uma vez que, nos dias de hoje, enquanto um discurso racista antinegro seria amplamente exposto e universalmente repudiado – e assim deve ser –, a retórica antibranca é não apenas acobertada, como incentivada e naturalizada. Nikki Giovanni não apenas não foi cancelada, como continua louvada por celebridades do quilate de uma Oprah Winfrey.
Como se vê, o racismo estrutural talvez exista mesmo. Mas, ao contrário do que querem nos fazer crer os seus propagandistas, segundo quem os negros continuam sendo suas principais vítimas, sua natureza reside precisamente nessa retórica contemporânea de ódio antibranco reproduzida rotineiramente, como se natural fosse, em escolas, universidades e redações de jornal. Se o conceito tem alguma materialidade – se, em suma, é algo além de uma ideia abstrata brotada da imaginação de intelectuais-ativistas –, é em casos de violência racial explícita, a exemplo do atentado no metrô de Nova York, que ela deve ser buscada.
Gazeta do Povo
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