Eles sempre se preocuparam em salvar a Bolsa - mas agora é diferente
A taxa de inflação de preços nos EUA renovou sua máxima e alcançou o maior valor em quarenta anos.
Segundo dados recém-publicados hoje (13 de abril de 2022) pelo Bureau of Labor Statistics, o índice de preços ao consumidor (CPI - Consumer Price Índex) acumulado nos últimos 12 meses foi de 8,5%.
A última vez em que ele esteve tão alto assim foi foi em janeiro de 1982, quando a taxa foi de 8,4%.
Gráfico 1: evolução da taxa de inflação de preços ao consumidor americano (acumulado em 12 meses)
Na zona do euro, por sua vez, a carestia também está vigorosa.
Oficialmente, a taxa de inflação aos consumidores está em quase 8%. É a maior da história do euro.
Gráfico 2: evolução da taxa de inflação de preços ao consumidor da zona do euro (acumulado em 12 meses)
Já a taxa de inflação de preços aos produtores— ou seja, os preços que os produtores pagam em suas matérias-primas para fabricar bens — está em fulminante ascensão. Bateu 31,4% nos últimos 12 meses.
Gráfico 3: evolução da taxa de inflação de preços ao produtor na zona do euro (acumulado em 12 meses)
A Alemanha, sempre tão ciosa de sua moeda, está assombrada. Em 30,9%, a inflação ao produtor no país é a maior desde 1949.
Para se ter uma ideia do que representa este valor, a taxa de inflação de preços ao produtor no Brasil está em 20%, 10 pontos percentuais a menos.
A tese de que a inflação era "transitória" e que não havia motivos para preocupação, obviamente, já acabou. A invasão da Rússia à Ucrânia apenas acelerou uma tendência que era inevitável.
A questão é: o que o Fed e o Banco Central Europeu irão fazer? Isso terá consequências para o resto do mundo.
O histórico recente
Em 1989, estourou a maior bolha financeira de todos os tempos: da Bolsa e dos imóveis japoneses.
Após uma década de estímulos monetários, os preços de imóveis alcançaram a estratosfera. Os Jardins Imperiais, no centro de Tóquio, (apenas 1 km²), valiam mais que todos os imóveis da Califórnia juntos. O índice Nikkei, da Bolsa japonesa, jamais se recuperou e ainda está 30% abaixo do pico de 1989.
Gráfico 4: evolução do índice Nikkei, da Bolsa de Valores do Japão
O estouro foi arrasador para a poupança dos japoneses e para a economia.
Recordamo-nos de apenas um investidor que navegou bem a bolha: ele identificou uma companhia aérea japonesa com patrimônio líquido negativo (ou seja, a contabilidade indicava mais dívidas do que bens). Mas a companhia detinha um imóvel no centro de Tóquio, cujo valor de mercado era muitas vezes superior ao valor contábil. O investidor comprou a companhia, em seguida vendeu o imóvel, saldou as dívidas e embolsou uma bolada.
Assustado com o cenário devastador, o Banco do Japão concebeu instrumentos não-convencionais que foram copiados pelos demais Bancos Centrais após a crise de 2008 e intensificados com a pandemia.
Com efeito, virou regra: sempre que há uma turbulência, os Bancos Centrais mundiais copiam a política monetária do Banco Central do Japão (BoJ).
Junto com o BoJ, o Federal Reserve (o Banco Central americano) foi também pioneiro nesta política, embora tenha começado bem mais comedido.
Mais especificamente, desde 1987, a cada queda relevante da Bolsa e a cada recessão, o Fed sempre pôs em marcha a seguinte receita: reduzir juros, expandir a base monetária e, com isso, inundar os bancos com dinheiro recém-criado na esperança de que eles emprestarão, comprarão ativos, e manterão estes ativos valorizados.
Essa receita de socorro automático ficou conhecida como o "Fed put", ou "seguro do Fed", uma espécie de licença para comprar Bolsa e outros ativos sem risco de perdas. O longo histórico de socorro condicionou os investidores e bancos a presumir que "na próxima crise, o Fed novamente socorrerá a Bolsa e a economia".
E, com efeito, por reiteradas vezes o dinheiro novo animou a Bolsa e provocou gastos a curto prazo, mas não aboliu o ciclo econômico nem inibiu crises financeiras.
Isso ocorreu em 1987, 1991, 2001, 2008-2015 e agora em 2020.
O socorro de 1987 estimulou a carestia que fez o Fed elevar os juros em 1989 e provocar a recessão de 1990.
A expansão monetária da década de 1990 gerou a bolha das ações de internet (pontocom) que estourou em 2000, quando o Fed estava novamente elevando os juros para conter a carestia.
O estouro das pontocom em conjunto com os ataques de 11 de setembro fizeram com que o Fed voltasse a expandir a oferta monetária na década de 2000, o que gerou a bolha imobiliária e um forte (para os padrões americanos) aumento dos preços ao consumidor. O aumento da taxa básica de juros (de 1% para 5,25%) culminou na crise financeira de 2008.
Uma nova e inédita política de afrouxamento monetária é então implantada e dura até o fim de 2015, quando o Fed volta a elevar, timidamente, a taxa básica de juros.
Em todos estes episódios, sempre que o mercado de ações americano dava um soluço, o Fed interrompia e até mesmo revertia seu ciclo de subida de juros.
O exemplo mais recente, antes da Covid-19, havia sido em janeiro de 2019: após uma queda de 9% na bolsa em dezembro de 2018, e mais uma queda de 3,5% no início de janeiro de 2019, o Fed se apressou em vir a público para anunciar que "seria mais paciente" na elevação dos juros. Dali em diante, ele não mais fez elevação nenhuma.
E então veio a Covid-19 e o resultado é o atual. A guerra na Ucrânia apenas acelerou o inevitável desfecho.
Mas a novidade é que, ao contrário das outras marretadas nos juros, agora a inflação de preços está muito mais acentuada — mesmo porque o volume de injeção monetária na economia foi sem precedentes.
Isto coloca o Fed em uma sinuca de bico: ele vai se preocupar em combater a carestia e ignorar o mercado de ações, ou vai proteger o mercado de ações e ignorar a carestia?
Por que o Fed não pode se dar ao luxo de ignorar o preço dos ativos
Há vários motivos políticos e econômicos de o Fed não querer que o valor dos ativos — majoritariamente ações e imóveis — caiam. Mas dois se sobressaem.
O primeiro é que a maioria dos americanos assalariados tem os seus famosos planos 401(k), que são suas previdências investidas em bolsa de valores. Uma queda na bolsa empobrece contabilmente dezenas de milhões de americanos.
O segundo motivo, e este é menos discutido mas é igualmente importante, é que tanto os americanos quanto o mundo estão altamente alavancados: ou seja, endividaram-se para investir e obter ganhos bastante acima do valor da dívida.
Quem está alavancado tem de utilizar colateral (garantia para o empréstimo). E este colateral normalmente são imóveis e ações, ambos ativos totalmente sensíveis às taxas de juros.
Se este colateral se desvalorizar, então a alavancagem se torna literalmente impagável, e o alavancado se torna contabilmente falido.
Se você utiliza um imóvel como garantia para uma dívida, e o valor deste imóvel desaba, você se torna insolvente. Você terá de liquidar outros ativos, normalmente ações. Igualmente, uma queda nas ações irá tornar contabilmente falidos investidores que utilizam ações como colateral para operar alavancados na bolsa e com isso obter retornos acima da média (uma prática comum em ambiente de juros baixos ou juros reais negativos).
Este, portanto, é o grande tormento do Fed. Ele não pode permitir grandes quedas no valor de imóveis e de ações, pois há um efeito-cascata imprevisível e com alto potencial destrutivo.
Logo, se o Fed pressentir que o colateral de americanos e do mundo (que utiliza ativos americanos) pode ficar em risco em decorrência de eventuais elevações nos juros, ele dificilmente incorrerá nesta política. Entre uma carestia maior, mas com ativos mantendo seu valor nominal, e uma carestia menor, mas com ativos perdendo valor nominal (e falindo milhões de pessoas alavancadas, bem como aposentados e pessoas visando à aposentadoria), ele tende a optar pelo primeiro cenário.
O Banco Central Europeu, não é diferente - mas é pior
Proteger os preços dos ativos não é preocupação exclusiva do Fed. Além do já mencionado Banco Central do Japão, o Banco Central Europeu (BCE) também segue a mesma linha.
O mercado financeiro obviamente já entendeu que os propósitos não-oficiais dos principais Bancos Centrais mundiais têm sido a) sustentar os preços de ativos (principalmente ações e imóveis), b) atenuar (ou tentar extinguir) o ciclo econômico, c) financiar os déficits dos respectivos governos.
Com as maciças — e até então inéditas em volume — injeções monetárias para combater a pandemia, ocorreu uma raríssima sincronização do ciclo econômico no mundo. A inflação de preços agora sobe simultaneamente em quase todos os países, até no Japão. Quase todos os bancos centrais já iniciaram ou anunciaram que irão iniciar altas de juros.
A notável exceção é o Banco Central Europeu, que tem combatido a inflação de preços apenas com retórica vazia. No ano passado, abandonou a histórica meta de inflação, "abaixo de 2%", e adotou meta de inflação "próxima a 2%" (pode flutuar acima por longo período). A nova atitude "pombinha" ("dovish") do BCE de Christine Lagarde jogou a inflação para 8%, ao passo que a inflação no atacado, como visto no início deste artigo, tem rodado acima de 30% (maior que no Brasil).
A sinuca de bico do BCE é real. Uma eventual alta dos juros pode elevar em demasia o custo de captação dos governos da Itália (cujos juros de 10 anos subiram de 0,5% para 2%) e da Grécia (que subiram de 0,5% para 2,5%), criando uma situação parecida com a crise existencial do euro de dez anos atrás.
Mas, caso o BCE siga financiando déficits da Itália e da Grécia e praticando juros zero, a espiral inflacionária preços-salários-preços entrará em ação.
Para concluir
Hoje, a Bolsa americana está borbulhante, com ganância e euforia em retroalimentação. Parte da explicação tem a ver com a "TINA, expressão da Margaret Thatcher, "There Is No Alternative". Ela se referia à economia de mercado, o melhor e único sistema que funciona. A analogia é que, como a renda fixa não paga nada, não parece haver outra opção do que colocar na "tina" da Bolsa.
Porém, se o Fed optar pelo combate inequívoco à inflação e eventualmente indicar uma trajetória de normalização dos juros (a níveis acima da inflação), a Bolsa poderá despencar, a ganância se tornar pavor, e aquele efeito cascata sobre a alavancagem gerar estragos.
Nem investidores, nem bancos, nem gestores, nem os demais países anseiam por essa alternativa. Também não aplaudiram inicialmente quando Paul Volcker acertadamente partiu para cima da carestia aumentando os juros em 1981, o que propiciou a volta da estabilidade e décadas de lucros nos mercados.
O grau de liberdade do Fed desapareceu. O do BCE também. A opção das injeções monetárias não-inflacionárias expirou. A regra do jogo mudou, e os investidores — inclusive os brasileiros — precisam reler o manual para evitar as perdas.
O Brasil, por sua vez, é um dos poucos que têm feito tudo certo.
Helio Betrão é o presidente do Instituto Mises Brasil.
Anthony P. Geller é formado em economia pela Universidade de Illinois, possui mestrado pela Columbia University em Nova York e é Chartered Financial Analyst credenciado pelo CFA Institute.
Mises Brasil