A sopa de letrinhas da política nacional, atualmente com 33 siglas registradas, corre o risco de ser ampliada. Há mais de 70 projetos partidários em formação
Os dados disponibilizados pela Justiça Eleitoral trazem um alerta para o cenário político do país. Além dos 33 em atividade, há 77 partidos em formação no Brasil. Ou seja, há o risco de as próximas eleições gerais, programadas para o ano que vem, contarem com a participação de mais de 100 legendas disputando a atenção — e o voto — de milhões de brasileiros.
Leia mais:
“O voto distrital pode mudar o sistema eleitoral brasileiro”
A lista de projetos que tentam chegar às urnas vai além do Aliança pelo Brasil, idealizado por aliados do presidente Jair Bolsonaro. Há diversas “bandeiras” representadas nessa condição. É o caso, por exemplo, do Partido Carismático Social, do Partido da Frente Favela Brasil e do Partido Pirata do Brasil. Algumas agremiações defendem programas bem específicos (e restritivos). Nesse sentido, aparece o Partido Popular de Liberdade de Expressão Afro-Brasileira.
Pelos nomes e discursos pregados, alguns surgem com aparente incoerência. O Partido Ecológico Cristão apresenta em seu site oficial uma campanha para tentar acelerar a coleta de assinaturas, um dos itens necessários para avançar na intenção de se tornar um partido político com vez nos pleitos do Brasil. Para isso, decidiu-se investir no sorteio de um HB20, carro movido a gasolina, combustível fóssil. Outro detalhe: apesar do nome, não há referência no estatuto nem no manifesto à defesa do cristianismo.
“[Negros] nunca gozaram das mesmas oportunidades dos não negros.” É o que defende o projeto que deseja implementar o “favelismo” no Brasil.
O Partido da Frente Favela Brasil, por sua vez, insiste na ideia de implementar uma política autodenominada de “favelismo”. Para os idealizadores da tese, os negros brasileiros “nunca gozaram das mesmas oportunidades dos não negros”. Já os responsáveis pelo Partido Popular de Liberdade de Expressão Afro-Brasileira falam em agir em defesa da “construção de uma sociedade justa, igualitária e pluralista”. Não se explica, porém, a razão de, por sua nomenclatura, defender apenas uma única parcela da sociedade.
No Partido Social Carismático, o que chama a atenção é o tópico “Sobre” divulgado pelos idealizadores da iniciativa partidária. Há somente a explicação de que o termo carismático é de origem grega: “khárisma, que significa dom, poder de transformação”. Por ora, o projeto não transformou nada nem ninguém. Sem site oficial, conta com menos de 800 seguidores em sua fan page — com a última postagem datada de novembro de 2014. Aparentemente, faltou carisma.
Além de reunir nerds, edições da Campus Party, conhecida feira voltada à cultura pop, ajudaram a emergir a ideia de o país contar com a presença do Partido Pirata, conforme se salienta no “Quem somos” do projeto. Ativos nas redes sociais, os responsáveis pela proposta partidária defendem, com eufemismos e termos em inglês, o acesso ilegal a conteúdos protegidos por direitos autorais. Nesse sentido, colocam-se contrários ao que chamam de “copyright trolls” e ainda pedem que se ignorem acusações por “supostamente ter baixado algo.”
Siglas ressuscitadas
Fora ideologias confusas, incoerentes e até mesmo ilegais perante os olhos da Constituição Federal, a lista de partidos políticos em formação conta com quem deseja ressuscitar antigas legendas. Dominante no período da ditadura militar, a Aliança Renovadora Nacional (Arena) é um desses exemplos. Antecessora da Arena, a UDN aparece como sigla de quatro projetos distintos. Reconhecido por ter o ex-deputado federal Enéas Carneiro como seu líder máximo, o Prona pode ressurgir a partir de duas propostas.
Lista completa
Confira, abaixo, a tabela com os 77 partidos políticos em formação no Brasil e suas respectivas siglas. Os dados oficiais são do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Muitos partidos, pouca democracia
Diferentemente do que defendem os líderes das agremiações ativas e em formação, cientistas políticos afirmam que o excesso de siglas acaba por prejudicar o jogo democrático no país. Em 2018, o mestre em ciências políticas Carlos Freitas havia ressaltado, em entrevista à Rádio Câmara, que a presença de muitos partidos com representatividade no Congresso Nacional pode travar a aprovação de leis. “Um dos impactos da fragmentação partidária diz respeito à governabilidade. É muito mais difícil para o Executivo negociar com o Legislativo.”
A fragmentação partidária no Brasil chamou a atenção até de pesquisadores internacionais. Há três anos, estudo realizado pela Fundação Getulio Vargas (FGV) em parceria com a Universidade de Oxford, no Reino Unido, concluiu que por aqui há “muitos partidos desnecessários”. Nesse sentido, a equipe responsável pela pesquisa defendeu a redução do quadro a apenas duas legendas, uma de centro-esquerda e a outra de centro-direita.
“Partidos estão sendo criados por outras razões, não para defender bandeiras”
“Tem muitos partidos desnecessários no Brasil, em termos de representação ideológica. Quando um partido é criado, normalmente é para atender a um grupo ideológico pouco representado, dar voz a grupos. Mas não é o que está acontecendo”, afirmou ao portal da BBC Brasil o professor Timothy J. Power, então diretor do Programa de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford. “Os partidos no Brasil estão sendo criados por outras razões, não para defender bandeiras”, prosseguiu o acadêmico.
Escritor brasileiro e pós-doutor em ciência política pela Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, Bolívar Lamounier foi além de analisar a questão da governabilidade ou a real intenção por trás da formação de uma sigla partidária. Com o olhar no cidadão comum, observou que o excesso de siglas “desorienta os eleitores”. Ele falou a respeito em entrevista a um canal no YouTube, em 2017.
Como surge um partido político?
No decorrer dos últimos anos, novas regras foram implementadas para fazer com que uma ideia se torne um partido oficial no Brasil. Coincidência ou não, o conjunto de normas entrou em vigor depois que o então prefeito de São Paulo Gilberto Kassab resolveu deixar o DEM para fundar o PSD, “um partido nem de direita, nem de esquerda e nem de centro”, em 2011. Desde então, o próprio Kassab é o presidente nacional da sigla.
Atualmente, com base em sua resolução de 2018, o TSE define a necessidade de que se cumpram ao menos cinco etapas para que um partido deixe de ser mero projeto e passe a disputar a preferência do eleitorado — além de brigar pela repartição dos fundos partidário e eleitoral. A saber, as fases a ser cumpridas são as seguintes:
- Elaborar um programa e estatuto com a assinatura de pelo menos 101 fundadores, que sejam eleitores residentes no Brasil e estejam com direitos políticos plenos;
- Ter seu registro em cartório de Brasília e a publicação do estatuto no Diário Oficial da União (DOU);
- O partido em formação tem um prazo de até 100 dias para informar ao TSE a sua criação;
- Obtenção do apoio equivalente a 0,5% dos votos válidos da última eleição geral para a Câmara, distribuídos em no mínimo um terço dos Estados, com um mínimo de 0,1% do eleitorado em cada um deles; o prazo é de dois anos;
- Obtenção do Registro de Partido Político em pelo menos um terço dos TREs do país e registro da Executiva Nacional no TSE.
O caso Aliança pelo Brasil
Sem partido desde que deixou o PSL, em novembro de 2019, o presidente Jair Bolsonaro é um dos mentores do Aliança pelo Brasil. Contudo, a dificuldade imposta pelo TSE, sobretudo em relação à quarta etapa, com a necessidade de recolhimento de assinaturas de milhões de brasileiros, faz com que o mandatário do país pense na possibilidade de se filiar a alguma legenda já existente. Caso contrário, corre o risco de ficar de fora das eleições de 2022, uma vez que no Brasil não é permitido lançar candidaturas independentes.
“Seria mais fácil se eu tivesse pensado nisso [criação de um partido político] há cinco ou seis anos”, afirmou o presidente da República em dezembro do ano passado, conforme registrou Oeste. Na impossibilidade de surgir na urna como membro do Aliança pelo Brasil, ele citou PTB e Progressistas como possíveis destinos. Tal decisão deve ser divulgada até março.
Profissão: dirigente partidário
Enquanto Bolsonaro e aliados lutam para conseguir tirar o Aliança pelo Brasil do papel, outras figuras, que tiveram a ideia de criar um partido décadas atrás, deram-se bem nesse sentido e podem ser consideradas dirigentes partidários profissionais. Registrado junto ao TSE em 1997, o PRTB é desde então comandado por Levy Fidelix, personagem que tem 100% de derrotas nas eleições. Já se candidatou a deputado federal, prefeito, governador e presidente. Nunca alcançou nem mesmo 1% dos votos válidos. Mesmo assim, é o presidente da legenda a que o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, é filiado.
Também ativa desde 1997, a sigla Democracia Cristã (anteriormente chamada de PSDC) tem história similar à do PRTB: um comandante que acumula insucessos nas urnas. Responsável pela iniciativa, José Maria Eymael consta até hoje como o presidente nacional do partido. Deputado federal por dois mandatos consecutivos, de 1986 a 1995, tentou chegar à Presidência da República em cinco oportunidades — sempre com votações inexpressivas. Em 2018, por exemplo, conquistou 0,04% dos votos válidos.
A leva de políticos que assumiram a função de dirigentes partidários desde a década de 1990 conta, ainda, com dois projetos dissidentes do Partido dos Trabalhadores. Primeiramente, em 1995, o grupo liderado por José Maria de Almeida fundou o PSTU. Dois anos mais tarde, surgia o PCO, de Rui Costa Pimenta. Além de serem dissidências dentro do clã petista, as duas siglas compartilham fracassos: não têm representatividade no Congresso Nacional e nunca venceram eleições majoritárias em nível estadual ou federal. Mesmo assim, Almeida e Pimenta permanecem como presidentes dos partidos.
Enquanto PRTB, Democracia Cristã, PSTU e PCO continuam com os comandantes de sempre, outro partido brasileiro segue o conceito de dinastia. Anteriormente denominado PTN, o Podemos teve desde a sua fundação, há 24 anos, como presidentes oficiais três membros da família Abreu. O primeiro foi Dorival de Abreu. Mais tarde, a sigla passou para o comando de José de Abreu, seu irmão. Filha de José, a hoje deputada federal Renata Abreu, de São Paulo, foi alçada à condição de presidente nacional do partido fundado por seu tio.
Assim — com dinastias, dirigentes partidários profissionais e mais de 70 partidos políticos em formação — segue o cenário do Brasil. Essa é a nossa democracia.
Anderson Scardoelli, Revista Oeste