sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

"O xadrez global em 2021", por Márcio Coimbra

O jogo complexo que se apresenta: EUA X China, UE e Mercosul, as afrontas da Rússia à democracia. E os interesses por trás do 5G




Em 2020 a pandemia mexeu com as estruturas do mundo como o conhecemos. As mudanças foram profundas e de toda ordem, pautando de forma importante a geopolítica mundial — afinal, um vírus que nasceu na China causou impactos profundos nos mais diferentes pontos do planeta. Adiante, a pandemia continuará sendo um ator crucial nos jogos de poder e, aliada a outros fatores, deve definir os rumos do mundo em 2021.

A vacina é o ponto de partida do ano que se inicia. Um esforço que começou pelo Reino Unido, já atravessou o Atlântico para os Estados Unidos e em breve se espalhará pelo mundo. O impacto do caminho da vacinação afetará o grau de reabertura das economias, sendo crucial para que muitos países consigam retomar o emprego, a produção e a estabilidade.

Certamente, países periféricos enfrentarão problemas maiores, com pouco acesso a recursos ou à logística necessária para uma ampla vacinação. O Brasil, com seu vasto território, enfrentará enorme desafio para fazer com que a vacina chegue a todos os municípios em pouco tempo. Aliás, tempo é elemento essencial a partir deste momento, uma vez que a retomada da economia depende da rapidez e da segurança do processo de imunização.

A pandemia será o tema central do governo que chega à Casa Branca. No comando da nação com o maior número de vítimas da covid-19, Joe Biden precisará lidar nos dois primeiros anos de mandato com duas questões centrais: imunização e retomada. O trabalho dos norte-americanos será focado na imunização e na recuperação dos empregos e da atividade econômica, um processo que deve durar no mínimo dois anos, quando o país encara um novo processo eleitoral com a renovação da Câmara e de um terço do Senado.

O peso geopolítico dos norte-americanos será um ponto importante a ser observado, uma vez que a beligerância de Trump será substituída pelo tom diplomático de Biden. O novo presidente é velho conhecido do establishment de Washington, com amplo trânsito entre os dois partidos e vasta experiência em relações exteriores, seja no Senado como na Vice-Presidência. Veremos uma mudança profunda de narrativa e exercício do poder, abrindo-se espaço para multilateralismo, diálogo e soft power.

Nesse novo desenho, a Rússia assume o papel de maior antagonista de Washington, com Pequim sendo monitorada, contudo sem o enfrentamento exposto e direto exercido por Trump. A influência desses dois atores na América Latina, território de natural influência norte-americana, é um dos pontos que a Casa Branca deve manter em seu radar. A influência de chineses e russos no continente americano é vista com muita desconfiança por Washington e certamente Biden trabalhará para evitar a expansão desse movimento.


A reconstrução da imagem chinesa não tem relação apenas com a catástrofe global causada pela pandemia


A Rússia deve lidar com os desafios de manter as antigas repúblicas soviéticas sob seu domínio, mesmo que indireto. As reações contra a influência de Moscou foram a tônica em diversos países em 2020, e o Kremlin deseja evitar que esses questionamentos se ampliem para países vizinhos. A crise na Belarus, que vivenciou uma fraude eleitoral de proporções inimagináveis, precisa ser contida. Lukashenko, o autocrata patrocinado por Putin, pretende se manter no poder. As perseguições e prisões políticas fazem parte do cardápio na região, mas a resistência da União Europeia tem ajudado a evitar o pior.

Ainda em 2020, a Rússia teve de lidar com a crise entre Armênia e Azerbaijão, um novo governo anti-Kremlin eleito na Moldávia e uma severa crise política no Quirguistão, na fronteira chinesa. Putin buscará estabilizar os satélites ou terá de conviver com uma onda de governos hostis em países que Moscou considera exercer influência direta.

Enquanto isso, a China, que acredita possuir uma província rebelde em Taiwan, decidiu usar todo o seu poder para cercear Hong Kong. O receio internacional é que utilize essa experiência e momento para avançar sobre Taipei, colocando a região em estado de alerta. A comunidade ocidental internacional se mobiliza para defender Taiwan de qualquer avanço chinês sobre seu território autônomo.

Pequim possui outras frentes de batalha. A principal é uma ofensiva de reconstrução de sua imagem, dilacerada após a disseminação da covid-19. O controle inicial da doença foi falho. Uma administração caótica do problema ampliou o alcance do surto, transformando a doença em uma pandemia com catastróficos reflexos mundiais. Uma intervenção inicial e combinada teria sido crucial para evitar a propagação viral. Um fato que marcará para sempre a imagem de Wuhan.

A reconstrução da imagem chinesa, entretanto, precisa ir muito além disso. A perseguição aos uigures ganhou espaço na mídia e precisa cessar. Se Pequim deseja reconstruir sua imagem depois da covid-19, deveria respeitar os direitos da minoria uigur, cessar a pressão sobre Taiwan e as ameaças diplomáticas aos países que não desejam adotar seu padrão de 5G da Huawei. Hoje já são mais de 50 nações.

Nesse panorama surge o Brasil, que deve definir o caminho que vai seguir no tocante ao 5G, com grandes chances de afastar-se da solução chinesa, mesmo sofrendo risco de retaliação, como aconteceu com a Austrália recentemente. Este, entretanto, é apenas um dos desafios que o Brasil deve enfrentar. Em uma região que se movimentou para a esquerda no espectro político com vitórias na Bolívia e na Argentina, o Brasil adquire importância seminal no continente sul-americano, liderando um caminho à direita que pode seguir pressionando a ditadura de Maduro na Venezuela.

A pandemia é certamente o maior desafio do mundo no ano que começa, contudo questões relevantes seguem no radar, como as violações aos direitos humanos em lugares como Coreia do Norte, China, Rússia e também Venezuela. O Brexit continua sendo um desafio na Europa, ao mesmo tempo em que o Brasil espera ver encaminhado o acordo entre Mercosul e União Europeia. A liberdade de expressão sofre ataques em Hong Kong, Turquia e China e a soberania de Taiwan é posta em xeque por Pequim.

O xadrez político internacional recebe novos atores na medida em que se reposiciona à espera dos próximos movimentos desse intrincado jogo. Dessa soma de fatores deve surgir um novo equilíbrio de forças, com esgotamento de soluções populistas e renascimento de um mundo multipolar. 2021 promete. Até porque, convenhamos, 2020 realmente ficou devendo.


Márcio Coimbra é coordenador da pós-graduação em Relações Institucionais e Governamentais da Faculdade Presbiteriana Mackenzie de Brasília, cientista político, mestre em Ação Política pela Universidad Rey Juan Carlos (2007). Ex-diretor da Apex-Brasil. Diretor-executivo do Interlegis no Senado Federal.

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