sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

O mito das ‘desigualdades’

A América Latina desaba e os tecnocratas acreditam, por ignorância ou ideologia, que 'combater as desigualdades' é a vara de condão para entrar no baile do progresso





As notícias são pouco alvissareiras para a América Latina neste início de ano, levando muitos a crer que as nuvens escuras alojadas nos céus da região pelos ventos pandêmicos vindos do leste não vão se dissipar rapidamente. Às incertezas mundiais quanto à efetividade das vacinas e à consequente vitória sobre a pandemia somam-se, na região, várias outras obscuridades, como tensões políticas em diversos países, elevadíssimo endividamento dos governos e enormes resistências a reformas estruturais que poderiam colocar as economias locais nos trilhos, tudo isso tendo como pano de fundo a crônica e impressionante sucessão de más políticas praticadas por governos de hoje, ontem, anteontem e trasanteontem.

Os dados do Fundo Monetário Internacional para o comportamento do PIB desde o nível pré-pandêmico até o previsto para o final de 2021 parecem encorajar o pessimismo. Até o fim deste ano o PIB da América Latina e do Caribe ainda deverá ficar 4,8% aquém do nível registrado anteriormente à pandemia, um porcentual negativo superior ao de todas as demais regiões — que, por sinal, também ainda estarão abaixo de suas posições anteriores à explosão do vírus. A exceção deverá ser alcançada pelos países em desenvolvimento da Ásia — isto é, para sermos mais precisos, e para nenhuma surpresa, pela China, com crescimento previsto de 6% acima do nível pré-pandêmico.

Ao observar as estimativas para a região da dívida bruta ante o PIB, o mau agouro ameaça transformar-se em certeza: a proporção chega a 80% na média do subcontinente e abaixo apenas das relativas ao G7 e à União Europeia. Trata-se do maior endividamento mundial entre as áreas em desenvolvimento. Vale registrar que no Brasil, no fim de 2020, a dívida bruta alcançou quase 100% do PIB, a maior razão registrada em nossa história.

Embora devamos sempre guardar reservas quanto à exatidão de previsões quantitativas em ciências sociais, é evidente que o céu está realmente encoberto e, não obstante já seja possível perceber movimentos de recuperação em alguns países da América Latina, também é possível afirmar que as mudanças são lentas. Além disso, há países que nem sequer iniciaram os ajustes. Portanto, não é racional apostar em uma superação rápida para a região como um todo. Diante desse quadro, alguns analistas chegam a afirmar que a América Ibérica não vai recuperar o nível do PIB verificado antes da peste até, na melhor hipótese, o ano de 2023. Não me arrisco a precisar até quando, mas é quase certo que vai demorar.

Nossa região é atrasada, e esse atraso não resulta da concentração de riqueza

O Brasil merece um parágrafo à parte, porque, malgrado as previsões catastróficas feitas no início da pandemia por FMI, Banco Mundial e bancos privados, de queda de cerca de 8% a 10% do PIB, fechou o ano com queda bem menor, aproximadamente de 4,3%, e o governo espera para 2021 um crescimento positivo em torno de 3,2%, desde que se consolide a recuperação “em V” ensaiada desde o último trimestre de 2020, o que nos devolveria à posição ocupada antes da crise. Obviamente, isso dependerá do relaxamento das tensões políticas e da aprovação das reformas estruturais.

Voltando à América Latina, para diversos tecnocratas e órgãos internacionais — quase todos encantados pelo canto ardiloso da sereia progressista —, como, por exemplo, a Comissão Econômica da ONU para a América Latina e o Banco Mundial, a principal tarefa a se exigir dos governos da região para recuperar as economias e levá-las ao paraíso na terra é pôr em prática o velho bordão do “enfrentamento das desigualdades de riqueza”. Sim, muita gente ainda acredita, por ignorância ou ideologia, que “combater as desigualdades” é a vara de condão para entrar no baile do progresso, o abracadabra para abrir as portas da riqueza, que basta fazer isso e: voilà!

Precisamos aprender a extrair coisas boas desse turbilhão de dificuldades em que está rodopiando o mundo e, sem dúvida, uma delas é nos livrarmos da falácia de que o Brasil e a América Latina são “ricos” e que nossos problemas se resumem às “desigualdades” e à “má distribuição de renda”. A verdade desagradável é que se trata de uma região pobre, com populações que vêm se depauperando mais e mais a cada ano, e isso não é de hoje. O Brasil, por maior que seja sua economia em relação às dos vizinhos, também faz parte do espetáculo. Sem rodeios semânticos, nossa região é atrasada, e esse atraso não resulta da concentração de riqueza, mas das escolhas equivocadas repetidas indefinidamente pelos governos da região, desde o tempo em que se amarrava cachorro com linguiça.

Desigualdade é efeito — e não causa! Para começar, não existe, em princípio, nada de imoral com relação a ela, uma vez que os indivíduos são naturalmente desiguais e heterogêneos em suas disposições para o trabalho, habilidades, inteligências, iniciativas, posses familiares, sorte etc., e isso tende a provocar níveis desiguais de renda e riqueza. O problema das sociedades pobres é que os efeitos naturais dessas diferenças de atributos vêm sendo historicamente somados a efeitos anômalos de uma infinidade de más políticas, estas, sim, imorais, porque impeditivas dos projetos de todos os indivíduos de tentar realizar suas aspirações na vida e, portanto, de desfrutar de um ambiente compatível com o princípio da dignidade da pessoa humana.

Não, meus amigos! Não são as “desigualdades”, são leis trabalhistas ultrapassadas, sistemas previdenciários estatais compulsórios e em regimes de repartição autodestrutivos; sistemas de saúde e educação conduzidos pelo Estado e simplesmente desastrosos, a par de politizados; desincentivos ao esforço e ao mérito, como os sistemas de cotas; burocracia estapafúrdia, assistencialismo demagógico e corrupção endêmica; leis ambientais que impedem investimentos; inflação, dificuldades de acesso a oportunidades, bloqueios à criatividade e ao empreendedorismo e desestímulos à formação de capital, que contribuem para reduzir os salários reais. Isso tudo, sim, é imoral, fere as leis da economia e causa a desigualdade econômica.

É preciso enxotar da região a crença generalizada de que a culpa pelas desigualdades existentes é da “sociedade” — isto é, de um ente holístico e imaginário — e que, portanto, o Estado, dotado de onipotência e que pode fazer tudo o que deseja, deve corrigir a situação, favorecendo os menos afortunados, impondo a igualdade na marra e promovendo a “justiça social”. Argumentações nessa linha, de tão intensamente utilizadas, transformaram a utopia da igualdade e a falácia a ela associada, a da “justiça social”, em autênticas vacas sagradas, adoradas vinte e quatro horas por dia pela esquerda e por demagogos de todos os matizes.

A recuperação dos efeitos da pandemia está para as “desigualdades” assim como caroços de manga estão para sorvetes de abacate, ou seja, não há nenhum elo entre uns e outros. A pobreza em relação ao resto do mundo e a morosidade da presente recuperação são apenas efeitos de problemas criados pelos próprios governos da América Latina, que, antes da pandemia, já era a região de crescimento mais lento em todo o globo. Francamente, essa conversa de cerca-lourenço das desigualdades já deu o que tinha que dar e passou da hora de mudar o disco.

Leia também “A resposta liberal para a desigualdade”, de Gabriel de Arruda Castro


Ubiratan Jorge Iorio é economista, presidente do Conselho Acadêmico do Instituto Mises Brasil e professor associado (aposentado) da Uerj.

Revista Oeste