A nova elite política e cultural quer que o racismo continue indefinidamente para beneficiar-se dos movimentos antirracistas
O ano de 2020 foi moldado por duas coisas. O novo coronavírus dominou todos os aspectos de nossa vida. Mas algo mais também nos agarrou: o antirracismo. Em maio, chocados com a morte de George Floyd pelas mãos de um policial de Minneapolis, nos Estados Unidos, pessoas em todo o mundo saíram do confinamento para participar dos protestos Black Lives Matter (BLM). Estátuas foram derrubadas, figuras públicas se ajoelharam em solidariedade e muitas pessoas bloquearam suas postagens nas redes sociais por um dia. Escolas, universidades e locais de trabalho intensificaram o treinamento em diversidade e iniciativas antirracistas.
Obviamente, houve protestos contra o racismo no passado. Mas no último ano foi diferente. Nunca antes pessoas em todos os continentes, em países e cidades que enfrentam seus próprios problemas, compareceram em tão grande número para apoiar a mesma causa. Nunca antes livros como White Fragility (Fragilidade Branca), Por Que Eu Não Converso Mais com Pessoas Brancas sobre Raça e Como Ser um Antirracista se tornaram best-sellers internacionais. E nunca antes um movimento de protesto teve tanto apoio do establishment. No Reino Unido, o BLM foi publicamente aprovado pela família real, pela Premier League do futebol e por políticos importantes. Corporações multinacionais também entraram em ação. O fabricante de sorvete Ben & Jerry’s comprometeu-se a fazer todo o possível para desmantelar a supremacia branca, enquanto as universidades de primeira linha emitem declarações denunciando seu racismo institucional.
A integração e o apoio da elite a iniciativas antirracismo indicam uma nova compreensão do racismo. A Critical Race Theory (teoria crítica da raça — CRT, na sigla em inglês) costumava ser uma atividade minoritária, um obscuro interesse acadêmico. Em 2020, forneceu a justificativa para protestos, livros, oficinas de diversidade e aulas escolares. Em junho, o Canal 4 britânico exibiu A Escola Que Tentou Acabar com o Racismo, série documental que acompanha a trajetória de crianças em um programa de reeducação antirracista com base nos princípios da CRT. Novas frases entraram em nosso vocabulário. Termos como racismo sistêmico, preconceito inconsciente, privilégio branco, apropriação cultural, reparações, microagressão e interseccionalidade migraram de acadêmicos e ativistas para jornais, discussões de rádio, campanhas de caridade e aulas escolares. O presidente dos EUA, Donald Trump, e a ministra da Igualdade do Reino Unido, Kemi Badenoch, fizeram discursos citando explicitamente a CRT e apontando quão nociva ela pode ser.
O que é a Critical Race Theory?
A CRT começa com um desafio ao racismo “científico” do século 19 e início do século 20. Nos tempos do Império Britânico, a exploração colonial e a escravidão eram justificadas pela crença de que os brancos eram física, mental e moralmente superiores às pessoas que eles governavam. Essa visão se estendia à classe trabalhadora doméstica, que era retratada como geneticamente distinta e inferior à classe alta. Essa compreensão biológica da raça começou a ser questionada após a 2ª Guerra Mundial, embora seu legado tenha continuado a se manifestar na África do Sul na era do apartheid, no sul dos Estados Unidos com as leis de Jim Crow e no Reino Unido com a discriminação.
Os teóricos críticos da raça não são os primeiros a apontar que a raça é socialmente construída; ou seja, não é um fenômeno que ocorre de modo natural, mas criado e tornado significativo por pessoas coletivamente, ao longo do tempo e do lugar. Poucos hoje discordam disso. Contudo, enquanto uma geração anterior de antirracistas desafiou o significado social atribuído às diferenças biológicas para argumentar que havia uma raça, a raça humana, e enfatizou traços universais que criam uma humanidade comum independentemente da cor da pele, os teóricos raciais críticos argumentam que, uma vez construída, a raça se torna um fato incontestável. Como Robin DiAngelo explica em White Fragility: “Embora não haja raça biológica como a entendemos, a raça como construção social tem um significado profundo e molda todos os aspectos de nossa vida”.
Quando a raça é vista dessa forma, o racismo é entendido como sistêmico; isto é, construído na própria estrutura das sociedades concebidas por brancos, para o benefício dos brancos. Os defensores da CRT argumentam que as ideias de superioridade branca e inferioridade negra são intrínsecas à nossa língua, à cultura e até mesmo a interpretações da História. Todos os aspectos de nossa vida diária, desde educação, policiamento, serviço de saúde e emprego, assumem uma norma branca, argumentam eles, e isso ridiculariza a igualdade perante a lei e a noção liberal de igualdade de oportunidades. Como a jornalista Reni Eddo-Lodge explica em Por Que Eu Não Converso Mais com Pessoas Brancas sobre Raça: “Se você é branco, sua raça quase certamente terá um impacto positivo na trajetória de sua vida de alguma forma. E provavelmente você nem vai notar. Em um argumento inescapavelmente circular, a raça é construída e tornada significativa por meio do racismo; são as experiências cotidianas das pessoas em uma sociedade racista que criam a realidade da raça”.
As origens da Critical Race Theory
A CRT está na moda e é altamente influente, porém tem uma história longa e complexa. Suas origens remontam a uma divisão dentro do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos. A liberdade de expressão, a democracia e a igualdade jurídica foram inicialmente consideradas essenciais para a luta pelos direitos civis. Entretanto, no final da década de 1960, com o progresso parecendo ter estagnado e o racismo e a pobreza ainda sendo problemas importantes, grupos dentro do movimento começaram a questionar a eficácia desses princípios. Muitos chegaram à conclusão de que a igualdade legal não apenas deixou a desigualdade social intacta, mas na verdade forneceu o contexto e a justificativa para sua continuação. Como apontam os autores de Words That Wound (Palavras Que Ferem), um texto CRT importante publicado em 1993:
Ficou claro para muitos que estavam ativos no movimento pelos direitos civis que as concepções dominantes de raça, racismo e igualdade eram cada vez mais incapazes de fornecer qualquer quantum significativo de justiça racial.
Tendo se deparado com os limites da igualdade formal e legal, a questão que o movimento dos direitos civis enfrentava naquele momento era a melhor forma de alcançar a igualdade social. Como Helen Pluckrose e James A. Lindsay apontam em Cynical Theories (Teorias Cínicas), mais ativistas materialistas focaram habitação, escolaridade, emprego e renda. Para alguns, isso levou à defesa do nacionalismo negro e à segregação dos direitos humanos universais. Ao mesmo tempo, outros começaram a encontrar um lar dentro da academia onde, para citar Words That Wound:
“professores e estudantes de direito individuais comprometidos com a justiça racial começaram a se encontrar, a falar, a escrever e a se engajar na ação política em um esforço para confrontar e se opor às forças sociais e institucionais dominantes que mantinham as estruturas do racismo enquanto professavam o objetivo de desmantelar discriminação racial”.
Esses ativistas acadêmicos argumentaram que o “interesse próprio majoritário” era “um fator crítico na vazante e no fluxo da doutrina dos direitos civis”; em outras palavras, uma sociedade de maioria branca dificilmente cederia seu poder de modo voluntário. Um texto fundamental desse período foi o de Derrick Bell, o primeiro professor afro-americano da Harvard. Em Race, Racism and American Law, publicado em 1970, Bell argumentou que os brancos só concedem direitos quando é de seu interesse fazê-lo. Em 1987, suas opiniões se cristalizaram ainda mais, e ele escreveu:
O progresso nas relações raciais americanas é em grande parte uma miragem que obscurece o fato de que os brancos continuam, consciente ou inconscientemente, a fazer tudo a seu alcance para garantir seu domínio e manter o controle.
Acadêmicos negros encontraram uma causa comum com professores engajados em estudos jurídicos críticos que buscavam formular uma crítica radical de esquerda às abordagens liberais dominantes do direito. Suas conclusões apresentaram o racismo “não como instância isolada de tomada de decisão consciente e preconceituosa, mas como algo mais amplo, sistêmico, estrutural e cultural, profundamente arraigado psicológica e socialmente”.
Na década de 1990, uma compreensão mais focada na identidade pós-moderna da CRT, impulsionada principalmente por feministas negras radicais, tornou-se bastante popular. Hoje, a Critical Race Theory é mainstream e termos como “racismo estrutural” agora se referem a estruturas de pensamento muito mais do que qualquer análise estrutural e material da sociedade. Os ativistas pegaram o entendimento subjetivo, identitário e psicológico do racismo desenvolvido nas universidades e o transformaram em uma lista de mandamentos a que todos devem obedecer.
As regras da CRT
Os teóricos críticos da raça podem não ver raça como um fato biológico, mas a veem como uma perspectiva arraigada, endêmica na cultura e impressa na consciência de cada indivíduo. Como consequência, o racismo nunca será resolvido desafiando as instâncias individuais de preconceito; em vez disso, toda a hierarquia social deve ser derrubada. Para atingir esse objetivo, é necessário rejeitar as falsas crenças em objetividade, neutralidade, igualdade e meritocracia. A experiência pessoal ou “vivida” supera tudo o mais. As pessoas nunca podem esperar entender o mundo a não ser do ponto de vista de seu grupo de identidade. Como Robin DiAngelo deixa claro: “Eu tenho um quadro de referência branco e uma visão de mundo branca, e me movo pelo mundo com uma experiência branca”.
Uma vez que a importância da experiência vivida é aceita, então é lógico rejeitar o “daltonismo”; as pessoas devem, antes de mais nada, ver a si mesmas e aos outros como seres divididos por raças. Paralelamente, os brancos devem reconhecer seu privilégio e os negros, sua opressão. Privilégio/opressão original significa que não é suficiente não ser racista, ou mesmo permanecer em silêncio — as pessoas devem ser ativamente antirracistas. O antirracismo começa com os brancos reconhecendo o próprio racismo e lutando contra a fragilidade provocada por ameaças a seus privilégios. A partir daqui, devemos sondar profundamente nossa psiquê para erradicar o preconceito inconsciente antes de, com cada palavra pronunciada, começarmos a construir a realidade de novo.
Os problemas com a CRT
Essa visão de raça e racismo, extraída da Critical Race Theory, mas que agora é a tendência dominante, representa uma ruptura significativa com o antirracismo do passado. O antirracismo passou do foco nas condições materiais da vida das pessoas para o funcionamento interno de sua mente; de desafiar a desigualdade legal para evocar representações culturais; do objetivo de erradicar a raça para ver todos como divididos por raças; desde considerar o racismo uma aberração até vê-lo como a norma. Essa mudança no antirracismo levanta novos problemas.
Muito do pensamento e muitos dos principais proponentes da CRT vêm dos Estados Unidos, onde houve segregação forçada. No entanto, suas ideias têm sido importadas por diversos países sem que sejam considerados contextos históricos e culturais específicos.
Apresentar o racismo como endêmico e intratável ignora todo o progresso que foi feito e sugere que tentativas de novas mudanças serão inúteis. Em vez disso, tudo o que os ativistas podem fazer é cavar cada vez mais profundamente em busca de exemplos para expor o racismo que eles sabem que existe. O foco em microagressões, em supostos atos sutis de racismo que podem ser perpetrados inconscientemente, pode surpreender as pessoas que se depararam com políticas discriminatórias legais de emprego e habitação há várias décadas. Ainda assim, para DiAngelo, “as adaptações do racismo ao longo do tempo são mais sinistras do que regras concretas de Jim Crow [que impuseram a segregação racial no sul dos Estados Unidos do final do século 19 ao começo do século 20]”.
Exatamente no ponto em que o racismo “científico” estava sendo totalmente desacreditado, a CRT deu um novo sopro ao pensamento ao insistir que todos têm uma identidade racial, e isso determina a percepção e a compreensão do mundo. Rejeitar o daltonismo nos leva a ver uns aos outros como seres divididos por raças. A ênfase na associação ao grupo corrói simultaneamente as diferenças entre os indivíduos e a possibilidade de encontrar uma causa comum entre os agrupamentos de identidade. Na pior das hipóteses, isso fornece uma nova justificativa para a segregação racial. Eddo-Lodge não vê o aumento de famílias inter-raciais como um sinal positivo de que as pessoas estão se tornando menos preconceituosas. Em vez disso, ela argumenta que “o privilégio branco nunca é mais pronunciado do que em nossos relacionamentos íntimos, nossas amizades e nossas famílias”.
A obsessão da CRT pela categorização racial e pelo privilégio dos brancos deixa pouco espaço para considerar o impacto da classe social nas chances de vida das pessoas. Na verdade, na pressa de construir hierarquias interseccionais que posicionam as pessoas negras como vítimas oprimidas da superioridade branca arraigada, as experiências de negros ricos, altamente educados e bem relacionados são esquecidas. E, em vez de promoverem a solidariedade entre a classe trabalhadora de todas as cores de pele, os brancos pobres devem ser ensinados a reconhecer seus privilégios.
Quem leva vantagem
Algumas pessoas certamente se beneficiam com a CRT. Os acadêmicos, especialistas e instrutores de local de trabalho que compõem a crescente indústria da diversidade têm uma boa vida e encontram um importante senso de propósito ao revelar nosso suposto “preconceito inconsciente”, ouvir penitências e cumprir a promessa de absolvição. Eles estão moralmente empenhados na existência do racismo e não podem se dar ao luxo de que ele desapareça.
Membros da classe mais ampla de especialistas, burocratas e gerentes de pós-graduação absorveram o script da CRT. Eles sabem que, três anos atrás, a sigla BME (em inglês, Black and Minority Ethnic: Negros e Minorias Étnicas) saiu de moda e foi substituída por BAME (com especificação asiática, ou seja, Negros, Asiáticos e Minorias Étnicas). E eles sabem que o próprio BAME está fora agora. As atitudes mudam e a linguagem evolui com o tempo, mas o vocabulário policial em nome da aplicação do antirracismo é a forma como a classe de pós-graduação de hoje reforça sua autoridade moral e status social. Suas percepções especiais sobre o privilégio branco e o impacto das microagressões permitem que justifiquem sua posição.
Esse projeto antirracista de elite é terrível para todos os outros. Tanto negros quanto brancos são reduzidos à cor de sua pele e colocados em oposição uns aos outros. Os negros devem aprender a se ver como vítimas; os brancos, como opressores privilegiados. E os homens brancos da classe trabalhadora são obrigados a expiar seu “privilégio” em um processo sem fim de arrependimento. Como diz DiAngelo:
Uma identidade branca positiva é meta impossível. A identidade branca é inerentemente racista; pessoas brancas não existem fora do sistema de supremacia branca.
Temos uma nova elite que usa não o racismo mas o antirracismo para inventar diferenças entre as pessoas que explora para seus próprios fins. Esses radicais não querem acabar com o racismo, e sim que continue indefinidamente. Eles não devem ter permissão para continuar com isso.
Joanna Williams está atualmente pesquisando crimes de ódio em seu papel como diretora do Projeto Liberdade, Democracia e Vítima no think tank Civitas
Revista Oeste