sexta-feira, 18 de setembro de 2020

‘Mignonnes’ e o necessário debate sobre sexualização infantil

Em pauta, a discussão sobre as responsabilidades dos pais, os limites para o que uma criança pode ou não fazer e o grau de exposição nas redes sociais


Há produtos culturais capazes de despertar tamanhas paixões que o objeto em si é convertido em questão acessória. A discussão passa a girar em torno daquilo que parece, das intenções do autor, não daquilo que é. O fenômeno internacional mais recente é o filme Mignonnes, disponível na Netflix.

 Uso a palavra fenômeno para enfatizar aquilo que no verbete do Dicionário Houaiss é definido como a “apreensão ilusória de um objeto, captado pela sensibilidade ou também reconhecido de maneira irrefletida pela consciência imediata, ambas incapazes de alcançar intelectualmente a sua essência”. Essa apreensão ilusória é ainda mais grave quando se verifica que muitas reações contrárias ao filme foram expostas em redes sociais por pessoas que não o viram.

Parte da controvérsia, ou da idiotia consciente, foi provocada pela própria Netflix, que divulgou pôster e descrição que não condiziam com o conteúdo do filme. O material sugeria que o filme fazia apologia, e não uma crítica, da sexualização de meninas por meio da música e da dança. Quando a empresa decidiu se desculpar, Inês era morta e a querela já estava estabelecida. Mesmo a correção da descrição é incorreta. O filme não é a história de uma criança que “começa a se rebelar contra as tradições conservadoras da família e encontra o seu lugar em um grupo de dança da escola”.

Quem assistiu ao filme e ali encontrou o resumo da Netflix ou um endosso à sexualização infantil, incentivo à pedofilia et caterva tem sérios problemas psiquiátricos, está completamente dominado por ideologia política ou é desonesto. Padece do mesmo diagnóstico quem viu na história a defesa da liberdade infantil, do direito a ser criança e outras sandices. Não se trata de produto que abre margem a interpretações: conteúdo e mensagem são claramente críticos à vinculação entre criança e sexualização.


Há nas personagens um misto de ingenuidade própria da idade com artimanha característica de criança quando quer algo


Mignonnes está longe de ser um grande filme, mas vale a pena ser visto. Como obra artística, tem o mérito de abordar com cuidado um assunto delicado. Mesmo nas cenas mais perturbadoras, evita o exibicionismo patético ou o panfletarismo tosco. Os personagens não são óbvios nem esquemáticos. E a atriz Fathia Youssouf está ótima no papel da protagonista Amy.

Filha de imigrantes muçulmanos do Senegal, Amy, de 11 anos, sofre o choque cultural ao conviver dentro de casa com os costumes e a religião da mãe e da tia-avó e, na escola, com crianças e adolescentes da periferia de Paris que são influenciados por uma cultura pop degradada. É por meio das redes sociais que crianças como ela têm acesso à música e à dança que celebram a sexualização. É a forma que ela encontra para fazer o que gosta (dançar) e se integrar ao grupo de dança das garotas populares da escola.

Ela, uma vez incorporada ao grupo, e suas colegas têm um entendimento precário a respeito do próprio corpo, de seu comportamento e do que suas atitudes provocam nos outros. Há nas personagens um misto de ingenuidade própria da idade, mas também de artimanha característica de criança quando quer algo ou quando é privada de algo. Numa das cenas, sem titubear e para se livrar da punição, uma delas ameaça denunciar como pedófilo o segurança de um local que invadiram. Nem toda inocência é inocente.

Amy, por exemplo, poderia ter sido retratada como “imigrante negra vítima da sociedade francesa” que se comporta de determinada maneira em razão de sua condição. Suas ações e reações estariam, portanto, justificadas. Não é dessa forma, porém, que a personagem é apresentada. Seu comportamento arredio, oscilante, agressivo, perturbado varia de acordo com as circunstâncias e ambientes, segue num crescente que assusta suas colegas até ela perceber, novamente, que é uma criança.


É um erro sugerir o uso de instituições estatais para censurar o filme


A própria ideia do que é ser criança provoca confusão na menina. Em casa, ela é ensinada que virou mulher porque teve a primeira menstruação. Isso também significa, de acordo com os costumes da família, estar pronta para se casar e constituir família. Na rua, na escola, na França, onde a cultura define a infância em razão da idade, ela “aprende” que, para ser mulher, deve imitar o comportamento de mulher que dança como quem transa. O enredo está longe de ser a história da menina que reage contra a família conservadora porque quer dançar com as colegas.

O caráter em formação de Amy encontra na negligência parcial da mãe, que vive seus dramas individuais e conjugais, o ambiente fertilizado para o desequilíbrio, para o furto, para a ilusão de que pode usar o próprio corpo e assim se tornar uma menina popular. Bem como para convencer o primo a deixar com ela o celular que dele havia furtado.

De todas as integrantes do grupo de dança, Amy se apresenta como a mais impetuosa e ambiciosa, a que está mais disposta a fazer o que for necessário para atingir seus objetivos. Nem que para isso seja preciso furtar o dinheiro da mãe. As agressões contra outras crianças, uma certa amoralidade e apatia no seio familiar, todos esses elementos integrados se expressam na personalidade labiríntica de Amy. Em determinado momento do filme, as parceiras de grupo percebem que ela fora longe demais e decidem se afastar.

Outro aspecto importante: todas as vezes em que as crianças cruzam os limites, são reprovadas por adultos e adolescentes. Caso o filme fosse sexualmente permissivo ou um panfleto político lacrador, os personagens se aproveitariam das meninas como meio de “denunciar a sociedade corrupta”. Em nenhum momento isso acontece.

Pelas entrevistas e artigo que li da diretora Maïmouna Doucouré, seu propósito era estabelecer um debate sobre a sexualização infantil. Mignonnes, de fato, poderia suscitar esse debate necessário. Mas esse debate necessário deveria ser sobre as responsabilidades dos pais, sobre os limites para o que uma criança pode ou não fazer, e o grau de exposição em apresentações públicas e nas redes sociais de alguém que não tem maturidade para tomar decisões. A discussão poderia extrapolar para a sexualização de mulheres crianças, adolescentes e adultas, principalmente, e não exclusivamente, em certo tipo de funk e de rap.

Outro debate necessário deveria ser a respeito da impossibilidade de acusar disso ou daquilo um filme que nem sequer foi visto e do erro de querer usar instituições estatais para institucionalizar a estupidez e a censura. Isso, obviamente, não é conservadorismo. É o casamento entre burrice e moralismo, a doença infantil de certo direitismo.


Bruno Garschagen é cientista políticomestre e doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa) e autor dos best-sellers Pare de Acreditar no Governo e Direitos Máximos, Deveres Mínimos (Editora Record).