Primeira mulher no Superior Tribunal de Justiça e famosa por acusar a existência de “bandidos de toga” quando ocupou por dois anos o cargo de corregedora nacional do Conselho Nacional de Justiça, a ex-ministra Eliana Calmon, 71 está aposentada do serviço público há cerca de mil dias, mas segue disparando críticas ao sistema político e ao Judiciário. Em entrevista exclusiva à ISTOÉ, a advogada diz que o presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, é “o pai do desmonte do CNJ” e o acusa de apoiar o “inoportuno” reajuste salarial de magistrados para “ficar bem com o Poder Judiciário”. E declara que a medida só teve sucesso no Congresso Nacional porque ninguém quis brigar com o setor: “Está todo mundo com o rabo na cerca com essa Operação Lava Jato”. Candidata ao Senado em 2014, ela diz que a experiência foi rica para “conhecer a política por dentro” e afirma que ninguém quer melhorar a situação partidária.
O que a senhora acha do aumento salarial para o Judiciário?
Sou absolutamente contra. É inoportuno. O magistrado está ganhando muito bem. Vamos fazer o seguinte? Uma tabela comparativa mostrando quanto ganha um médico do Exército, por exemplo, com dedicação exclusiva. Ou um dentista, um advogado… Mas, não, eles só querem se comparar com o que ganha um milionário, aí não é possível.
Por que esse aumento obteve sucesso no Congresso Nacional?
Houve um lobby muito grande. Mas também porque ninguém quer brigar com o Poder Judiciário.
Por quê?
Por quê? Não precisa nem eu dizer. Um juiz que trabalhava comigo dizia “ministra, está todo mundo com o rabo na cerca”. É uma expressão de matuto. O animal preso pelo rabo fica desesperado, faz qualquer coisa para sair. Então, está todo mundo com o rabo na cerca com essa operação Lava Jato. Então, é melhor não brigar com ninguém que tenha saia. Não se briga com mulher, com amante, nem com juiz, nem com padre. Usou saia, meu amigo, faça as pazes.
O ministro Ricardo Lewandowski lutou muito por esse aumento…
Pois é. Ele prometeu isso. Brigou muito para se contrapor a Joaquim Barbosa (ex-ministro do STF), que era absolutamente contra, então ele se colocou a favor. Quando os juízes foram pedir aumento a Joaquim, e eu estava presente, ele passou uma descompostura. E o Lewandowski se colocou inteiramente contrário àquela posição e aí teve de manter isso até o fim.
Há “bandidos de toga”, como a senhora declarou quando era corregedora do Conselho Nacional de Justiça?
Opa, muitos. Depois que eu saí da Justiça vi que há mais do que eu pensava. Porque eu estou do outro lado do balcão e as pessoas contam para mim as coisas que se passam. Quem conta são os advogados, que são os maiores conhecedores, os empresários e muitos dos que são achacados.
O que a senhora acha do trabalho do CNJ atualmente?
É como se ele tivesse encolhido. Foi feito um processo de desmonte do CNJ desde que saí. A partir da administração do ministro Gilson Dipp e em seguida, a minha, fizemos um trabalho de enfrentamento e isso deu muita projeção ao CNJ. E a partir daí o corporativismo tentou imoedir que o órgão tivesse interferência nas correições, nas atividades administrativas dos Tribunais — e isso contou com o entendimento que tinha o ministro Lewandowski. Ideologicamente, ele nunca aceitou bem essa interferência do CNJ no Poder Judiciário.
Quem é o pai desse desmonte?
Eu acho que foi o Lewandowski. O CNJ está para se transformar em uma figura completamente figurativa se for aprovado um projeto que cria os conselhos dos Tribunais de Justiça. Eles fariam uma filtragem de todas as denúncias que deveriam ir para o CNJ.
Qual seu balanço da Lava Jato?
Foi um divisor de águas, que começa com o mensalão e chega com mais profundidade na Lava Jato. Até porque encontrou uma legislação mais evoluída, como a lei da improbidade empresarial que traz diversos instrumentos como o acordo de leniência, a delação premiada, os acordos de compliance.
Há críticas de que estaria havendo abuso para obter delações, prendendo o investigado para forçá-lo a delatar.
Quando eu estava na Justiça, eu não tinha delação premiada. Mas confesso que quando participava das minhas grandes operações policiais eu fazia a mesma coisa. Eu entendia que nos crimes de colarinho branco, de organizações criminosas, você consegue ter um avanço nas investigações quando o sujeito deprime e fica com medo de ser condenado. Os mais duros não abriam o bico. Os mais acessíveis terminavam falando o que se passava naquela organização criminosa. Vejo a Lava Jato com bons olhos. Não se trata de ser justiceiro, mas usar o meio adequado previsto na lei.
O ex-presidente Lula diz estar sendo perseguido pelo juiz Sergio Moro. A senhora concorda?
O ex-presidente Lula e o PT ficaram com essa ideia de perseguição, essa cantilena, mas com o passar do tempo foi arrefecendo. Porque estão pipocando denúncias de tudo quanto é parte, de juízes, de São Paulo, de Curitiba, de Brasília. Isso não é uma perseguição nem de Sergio Moro nem de ninguém.
Moro é apontado pelo PT como arbitrário e autoritário…
Mas isso era de se esperar, porque todas as vezes que uma autoridade está tendo sucesso na punibilidade começa a ser desqualificada, porque essa desqualificação quer tirar o foco do réu e colocar no juiz. Bastante previsível.
O ex-senador Delcídio do Amaral disse em delação premiada que o governo Dilma Rousseff nomeou Marcelo Navarro ao STJ para atender interesses de presos da Lava Jato. A senhora acha que isso pode ter acontecido?
Eu não acho que seja mentira dele, não. Porque, quando se está pleiteando um cargo de ministro, se pede a todo mundo. E as pessoas menos fortes fazem, inclusive, algumas promessas. Agora, entre fazer a promessa e cumpri-la, está uma grande diferença. Eu acredito que seja verossímel, que houve ingenuidade por parte do governo e acho que houve leviandade por parte dos atores do Poder Judiciário.
Como assim, “se pede a todo mundo”?
Todo mundo (que pleiteia o cargo) promete, todo mundo tem padrinho político e esses padrinhos cobram e cobram. Ou seja, nesse mundo de poder, cada um tem um dono. Por isso eu sempre achei execrável essa forma de escolher ministro, porque fica com o pires na mão pedindo a todo mundo. E os advogados sabem exatamente, quando querem alguma coisa, a quem pedir. Pedem aos padrinhos políticos, para que peçam (aos magistrados) por eles. Quem quebra esse ritual termina ficando na vitrine. Começam a dever favor a partir da entrada na lista. Aí os colegas dizem assim: “Eu votei no seu nome, portanto você tem que contratar fulano para o seu gabinete, tem que empregar tantos assessores.” É assim que funciona no poder.
A senhora também teve padrinho político.
Sim. Quando cheguei ao Senado para a sabatina e me perguntaram o que eu achava desse sistema de escolha, eu disse: “Acho terrível, porque as pessoas ficam nas mãos dos padrinhos políticos”. Aí me perguntaram se eu havia tido padrinho. Respondi: “Lógico, se não eu não estaria aqui. São fulano, ciclano e beltrano”. Assim que disse quem eram, eles já não podiam me pedir nada.
Como foi sua experiência como candidata do PSB ao Senado em 2014 pela Bahia?
Extremamente rica para conhecer a política por dentro. Conheci a verdade dos partidos para saber que são casas de negócio onde não há proteção para os próprios candidatos bem desempenharem suas candidaturas. O partido trabalha para os interesses econômicos do partido. E ninguém está querendo melhorar a situação partidária, ao contrário. Querem igualar os partidos para que todos sejam casas de negócio, cada um com sua casa mais bem estruturada para vender o nome do partido, o fundo partidário, o tempo de televisão. Vender “vendido” mesmo: eu troco apoio na minha base e você me dá cargos; ou você fica como candidato do partido a prefeito na cidade tal e me paga R$ 100 mil. Eu vi isso por dentro.
A senhora pode dizer onde isso aconteceu?
Não, eu chegava em algumas capitais e perguntava como estava o partido tal e aí me contavam. Tinha um cara decentíssimo que era presidente do diretório, mas tiraram e botaram um sujeito safado por R$ 70 mil.
Qual sua opinião sobre o pedido de impeachment de Gilmar Mendes?
Ele é um pouco descuidado, emocional. Quando se zanga, fala de uma forma muito desabrida e isso pode dar uma conotação política. Mas não conheço nenhum ato dele que possa ser considerado de improbidade. Acho uma demasia, fruto de pessoas que querem neutralizá-lo.
Um ministro do Supremo pode dar opiniões políticas?
Não é comum, não deveria, mas ele faz. Até aqui, o que ele fez, não pode ser considerado criminoso. Ele fala, mas e aqueles com atos muito mais profundos de identidade ideológica e que não falam e a gente só vê as consequências do seu agir? Esses é que são perigosos.
A senhora nominaria algum?
Não. Assim também já é demais. Eu piso no tomate, mas não nessa velocidade (risos).
Nossos presídios estão à beira do colapso. O que pode ser feito, dentro do atual contexto orçamentário?
Quando os recursos são escassos, é preciso definir prioridades — e a questão carcerária é um tema que não pode ser relegado a segundo plano. O Ministério da Justiça precisa aperfeiçoar a gestão de projetos que já vêm sendo implementados pela área técnica e trabalhar de forma integrada com o judiciário, o Ministério Público e a Defensoria Pública. Importante ainda não insistir em ideias mágicas, fáceis e equivocadas, como foi a da privatização dos presídios, que não deu certo nem nos Estados Unidos.
Foto: Paulo Giandalia/Agência Estado; Marcelo Camargo/Agência Brasil