terça-feira, 25 de dezembro de 2018

"É a lama", por Carlos Andreazza

‘Tragédia em Mariana’ consiste numa aula sobre como escrever narrativa não ficcional


Só mesmo um país muito doente, ainda histérico por efeito de uma campanha eleitoral delirante, pode explicar a quase nenhuma atenção crítica dada a um dos mais importantes livros publicados no Brasil em 2018. Não falo aqui desde a condição de editor da obra. Mas como leitor; e jornalista.

Folheio os modestos cantos dedicados à literatura em nossos jornais e revistas, e o que vejo é a insistência no mesmo olhar elitista – só lacração, só lugar de fala (a carteirada que aliena), só pauta progressista da Vila Madalena — que cultiva peculiar senso moral sobre o que seja preconceito, e que afinal, claro, tombou cego ante (para) o fenômeno popular Jair Bolsonaro, mas que ainda se avalia em posição de ser a voz dos oprimidos; estes, os oprimidos brasileiros segundo os grupos de pressão nacionais, uma criação ficcional de realismo à altura do que conceberia um militante do PSOL holandês. Ninguém, senão a patota, se interessa. Mano Brown já deu a letra. A festa, porém, continua; a que não raro financia o crime organizado. Sabe? A farra cujos costumes bancam a importação dos fuzis confundidos com guarda-chuvas.
Aliás, o carnaval já desponta. No sambódromo, propriedade pública governada por bicheiros e milicianos, será um espetáculo de hipocrisia e cinismo — inclusive jornalístico. A gloriosa Mangueira, de badalado carnavalesco, fará homenagem à vereadora assassinada Marielle Franco — a mesma Mangueira cujo presidente, o deputado que paga o carnavalesco, está preso, acusado de partícipe na organização criminosa que assaltou o Rio de Janeiro.
Quem matou Marielle?
Mas folheio. Que literatura é esta? Nada sobre o mundo real; aquele em que vem a chuva e os barrancos descem, tragando as gentes sem distinção de cor e gênero. Nada sobre as ocorrências e circunstâncias que tocam — abalam — a vida das pessoas de verdade, aquelas que existem, que balançam como pingentes no trem, que não sabem se os seus chegarão vivos ao fim do dia, e que não estão preocupadas com a forma performática como os outros trepam nem com quem.
Tendo lido “Tragédia em Mariana”, o tal livro entre os mais importantes lançados no Brasil neste 2018, a pergunta que faço é: como será possível uma reportagem desta envergadura — sobre o maior crime ambiental da história brasileira — não haver merecido nem sequer uma resenha em grande veículo? Seria o caso de soltar um apelo corporativista: se vai o jornalismo sob tamanho ataque (em parte graças à soberba de seus operadores), como prescindir de exaltar a obra jornalística monumental que Cristina Serra esculpiu?
O trabalho me fez lembrar do que Malu Gaspar alcançou com o seu “Tudo ou nada”. É a característica de uma investigação obstinada: como produto, não mais apenas a reconstituição da trajetória de Eike Batista e seus golpes, ou o relato da sucessão de incompetência, ganância, negligência, corrupção e burocracia que resultou no rompimento da barragem de Fundão; mas a história de um país, o espírito de uma época captado.
Desde novembro de 2015 e durante mais de dois anos, Cristina Serra mergulhou no lamaçal que a enxurrada de lama da Samarco expôs. O resultado é obviedade da qual se esconder: o Brasil que não é Bento Rodrigues, o povoado afogado pela massa de rejeitos, é exceção. (Anda blindado e está tocando violão em Ipanema.)
A leitura deste livro-reportagem nunca deixou de me inteirar e reptar; de me tentar e enojar; de me emocionar e enfurecer. Isto porque o país está todo ali. Sobretudo na expressão de uma dobradinha disfuncional frequente, a própria musculatura da injustiça, da desproteção: Estado, o que deveria fiscalizar, e iniciativa privada, a que deveria promover oportunidades, articulados contra a sociedade. A lama de desprezo — produto previsível da cobiça e da omissão — que corre, diariamente, para cobrir o curso dos rios, o norte de nossas vidas, que polui de medo a água, a que perdemos a fé em beber, até manchar de morte o mar, aquele sobre o qual navegamos nossa jangada de pedra.
“Tragédia em Mariana” consiste numa aula sobre como escrever narrativa não ficcional. É ao mesmo tempo thriller, porque engancha como um filme de ação; investigação, porque revela e destrinça documentos inéditos, procedimentos criminosos e condutas vergonhosas; e cidadania, porque jamais se afasta da dimensão humana, do componente individual, do mundo real, particular, essencialmente precário, efêmero, da vida como ela é quando diante da desgraça: a luta por sobreviver no momento mesmo em que se dá, a memória dos que morreram, as pequenas mortes dos que restaram, os desejos miúdos dos que gostariam de recomeçar, aqueles para os quais encontrar uma foto de família — umazinha só — em meio aos escombros bastaria como pedra fundamental.
O Globo