Paul Johnson, do alto dos seus 90 anos, é um grande intelectual britânico. Basta pensar no seu extraordinário Tempos Modernos, leitura obrigatória para quem estiver interessado em compreender as raízes culturais do nosso tempo. Seus textos são um convite à reflexão. Dono de uma cultura fabulosa e de uma sinceridade cortante, Johnson não sucumbe aos clichês politicamente corretos. Em sua fascinante trilogia Os Heróis, Paul Johnson vai ao cerne da crise mundial.
“Os heróis”, diz Johnson, “inspiram, motivam (...). Eles nos ajudam a distinguir o certo do errado e a compreender os méritos morais da nossa causa.” E ao citar os heróis do Ocidente destaca, na Igreja Católica, o papa São João Paulo II. De fato, Karol Wojtyla assumiu uma Igreja Católica dilacerada pela turbulência provocada por equivocadas interpretações do Concílio Vaticano II. Curtido na contradição de sua sofrida Polônia, era um especialista na luta contra as ambiguidades. Coube-lhe a histórica missão de separar o joio do trigo e a difícil, mas bem-sucedida tarefa de aplicar a autêntica renovação propugnada pelo Concílio Vaticano II.
O pontificado de João Paulo II foi, evidentemente, um testemunho de fé, convicta e corajosa. Impressionou-me sua absoluta liberdade para escrever, falar e exortar, muito acima do que se poderia considerar politicamente correto. Mesmo sabendo que sofreria críticas, parece que não se importava com o seu prestígio em termos de marketing. Paradoxalmente, essa naturalidade, própria de quem age coerentemente e, por isso, desconhece o medo, explica o que os analistas chamaram o seu “sucesso na mídia”. Morreu cercado por uma impressionante multidão de jovens que ocuparam Roma para dar o seu adeus ao grande papa.
Os comentários de Johnson e a figura de João Paulo II trazem à minha memória um livro que exerceu forte influência no rumo da minha vida, Caminho (Editora Quadrante, São Paulo). Seu autor, São Josemaría Escrivá, cuja festa a Igreja celebra no dia 26 de junho, foi um apaixonado mestre da busca da santidade no trabalho profissional e nas atividades cotidianas. É o santo dos nossos dias. Prático e realista. Propunha, com ousadia, “materializar a vida espiritual”. Queria afastar os cristãos da tentação “de levar uma espécie de vida dupla: a vida interior, a vida de relação com Deus, por um lado; e, por outro, diferente e separada, a vida familiar, profissional e social, cheia de pequenas realidades terrenas”.
O cristianismo encarnado nas realidades cotidianas: eis o miolo da proposta de Escrivá. Pois bem, no ponto n.º 301 de Caminho, um best-seller da literatura espiritual, encontrei, há bastantes anos, uma chave importante para a interpretação da vida e da História: “Um segredo. Um segredo em voz alta: estas crises mundiais são crises de santos. Deus quer um punhado de homens ‘seus’ em cada atividade humana. Depois... ‘pax Christi in regno Christi’ – a paz de Cristo no reino de Cristo”.
O pensamento de São Josemaría Escrivá, apoiado numa visão transcendente da vida, consegue, de fato, captar plenamente a contextura humana e ética dos acontecimentos. Ele tem, no fundo, a terceira dimensão: a religiosa e moral. E só com essa lente é possível entender o mundo em que vivemos.
Na verdade, o esgotamento do materialismo histórico e a frustração do consumismo hedonista prenunciam um novo perfil existencial. O futuro, por paradoxal que possa parecer, será marcado por um resgate do verdadeiro humanismo. O mundo está sedento de liberdade, mas nostálgico de certezas.
Certezas que entusiasmam multidões, mas provocam descargas de bílis nos que vivem de mal com a vida. Recordo-me de um episódio exemplar. Há anos, o falecido Christopher Hitchens, então editor do Canal 4 da televisão britânica, num programa sensacionalista e de ranço panfletário, investiu contra Madre Teresa de Calcutá. O perfil da religiosa, provavelmente escrito num pub londrino, entre um scotch e outro, era uma impressionante combinação de ódio represado, marketing de escândalo e temor agressivo.
Outro jornalista, o francês Dominique Lapierre, em Muito Além do Amor, uma grande reportagem sobre o drama da aids, mostrou a verdadeira face da santa albanesa. De passagem por Nova York, leu uma notícia de impacto: “Madre Teresa de Calcutá inaugura, em pleno coração de Manhattan, um lar para acolher as vítimas da aids”. Seu feeling de repórter sugeria uma grande pauta. E seu profissionalismo impunha o elementar dever de garimpar o terreno.
Testemunhou, impressionado, a heroica generosidade das missionárias de Madre Teresa. As mesmas religiosas que ele vira trabalhando nos leprosários de Calcutá estavam agora no coração da América. Seus hóspedes, órfãos de uma sociedade opulenta, eram ex-presidiários da penitenciária de Sing Sing, toxicômanos do Harlem, frequentadores de bares e saunas gay. Todos, sem exceção, eram tratados como seres humanos. Lá, diria Lapierre, a solidariedade entra pelos olhos.
“Numa época de ceticismo e ateísmo, parece inevitável que as pessoas adorem os altruístas”, comentou, com desdém, Christopher Hitchens. Adorem ou odeiem, digo eu. Afinal, num mundo à deriva, dominado pelo culto ao prazer, a caridade genuína e límpida escandaliza. No ataque à frágil anciã, caro leitor, aparecia a mordida do ceticismo. Hitchens e seus seguidores de hoje não suportam a coerente sinceridade dos heróis e dos santos.
A santidade assusta e incomoda. Desnuda a nossa mesquinhez. É sempre um acicate. Mas a santidade também atrai. Madre Teresa, pobre e desvalida, deixou um magnífico exemplo de doação e um indelével rastro de bondade. O jornalista britânico, refém do seu sectarismo, produziu um legado menor. São Josemaría Escrivá acertou no cravo: “Estas crises mundiais são crises de santos.”
A todos, um feliz 2019!
CARLOS ALBERTO DI FRANCO É JORNALISTA
O Estado de São Paulo