O boicote anunciado pelo PT à posse de Jair Bolsonaro na Presidência da República é uma dessas decisões que têm tudo para se voltar contra seu autor. Mesmo reconhecendo o resultado da eleição deste ano, diz o PT que o processo eleitoral foi marcado pela falta de lisura do processo desde o impeachment de Dilma Rousseff. Depois, pela proibição legal da candidatura de Lula e pela “manipulação criminosa das redes sociais para difundir mentiras contra o candidato Fernando Haddad”.
Em relação ao impeachment, o PT pode falar o que quiser. Pode chamar de golpistas os partidos que votaram a favor do processo, ora xingá-los, ora a eles se aliar, mas o afastamento de Dilma se deu dentro da normalidade democrática, com rito estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal e com o julgamento presidido por um ministro aliado, Ricardo Lewandowski. Tão aliado, que ajudou o então presidente do Senado, Renan Calheiros (MDB-AL), a fatiar a sentença, dando a Dilma direitos políticos, mesmo tirando-a do poder. Sobre Lula, ele está enquadrado na Lei da Ficha Limpa, pois condenado por órgão colegiado. Quanto às fake news, elas avançaram sobre o eleitor de lado a lado. Não foram uma exclusividade do vencedor.
Nesse sentido, o boicote à posse de Bolsonaro tende a se tornar um gesto vazio. Como foram vazios e marcados pelos erros políticos alguns gestos do PT ao longo da história. Por exemplo: o partido decidiu boicotar o Colégio Eleitoral que, em 1985, elegeu Tancredo Neves presidente da República. Foi essa eleição que permitiu a consolidação da abertura democrática e a saída dos militares do poder, além da convocação de uma Assembleia Constituinte.
Três anos depois, o PT optou por votar contra a Constituição de 1988. Então líder do PT na Constituinte, Lula justificou, num discurso de 22 de setembro de 1988, que seu partido votaria contra o texto porque, “mesmo havendo avanços na Constituinte, a essência do poder, a essência da propriedade privada, a essência do poder dos militares continua intacta nesta Constituinte”. Mas, pelo sim, pelo não, Lula anunciou no mesmo discurso que, por decisão do Diretório Nacional do PT, os constituintes assinariam a Constituição. Hoje, todo mundo é testemunha de que os petistas fazem um grande exercício para esquecer o gesto do passado. (O partido votou também contra o Plano Real e contra a Lei de Responsabilidade Fiscal, reconhecidas iniciativas do bem.)
Num discurso em comemoração aos 20 anos da Constituição de 1988, em 5 de outubro de 2008, Lula disse aos participantes da cerimônia que se arrependia de não ter votado a favor da Carta. E contou como foi a luta para assinar o texto da Constituição: “Uma parte da bancada, radicalizada, achava que não deveria assinar e eu disse: ‘Não tem sentido. A gente participou dois anos aqui, ganhamos salário, ganhamos assistentes para nos ajudar, como é que pode um filho nascer e a gente não registrar? Vamos assinar’.” Na mesma fala, Lula disse que, na Presidência da República, compreendeu, como ninguém, que a Constituição, com todos os defeitos que tem, é um garantidor da democracia. “Esta é a verdade nua e crua.”
A ausência do PT na posse de Jair Bolsonaro vai significar alguma coisa? Nada. Bolsonaro não contou com o voto de petistas para se eleger. Não contará com o voto dos petistas para aprovar seus projetos. Mas usará o PT, mais uma vez, para falar com seu eleitor. Se na eleição ele se disse o anti-PT, e foi vitorioso, a partir da posse poderá dizer que o partido se negou a se fazer presente na cerimônia que coroou a festa da democracia. Só quem vai perder é o PT.
O Estado de São Paulo