A democratização do Brasil deu à população mais direitos. Todas as classes, dos mais ricos aos mais pobres, levaram seu quinhão. Com isso, ganhamos um Estado pesado, com carga de tributos crescente, que atrapalha o crescimento. Isso põe em risco os benefícios sociais e a redução de desigualdade. Marcos Mendes, economista doutorado pela Universidade de São Paulo (USP), consultor legislativo do Senado desde 1995, com experiência no Banco Central e no Tesouro Nacional, aprofunda-se no tema no livro Por que o Brasil cresce pouco? (Editora Elsevier). Mendes tem sugestões de estratégia para que o próximo governo faça ao menos algumas das reformas necessárias.
ÉPOCA – O senhor teme que as políticas de redistribuição de renda no Brasil desencorajem o crescimento. Por quê? Marcos Mendes – Houve uma redemocratização de uma economia muito desigual (a partir de 1985) . Passamos a atender uma grande parcela de cidadãos pobres que estavam marginalizados. No Brasil, antes da redemocratização, nem a saúde pública nem a educação eram universais. Não existiam políticas de atenção aos idosos mais pobres, nem aos aposentados rurais. Nossos indicadores sociais eram africanos. No momento em que essas pessoas passaram a ter voto e voz, políticas públicas tiveram de ser oferecidas. Governantes que não as atendem não são eleitos. Só que, ao expandir as novas políticas públicas, não foram cortados os privilégios nem as políticas para a população de alta renda. Também se expandiram as políticas favoráveis à população de classe média. Quando somamos todas as políticas, feitas a favor de todos, o gasto público chega a 40% do PIB. A expansão do gasto exige aumento da carga de tributos, e isso prejudica o crescimento econômico. As demandas dos diversos grupos não são apenas por mais gasto público. São também por regulação que proteja a renda de cada grupo. O pobre quer aumento real do salário mínimo, a classe média quer um mercado de trabalho muito regulado que proteja o emprego dela, os grupos de classe alta querem que a economia seja fechada, para não concorrer com os produtos importados. Toda essa regulação cria barreiras ao crescimento econômico. Democracia não pressupõe que todo mundo tenha direito a tudo.
ÉPOCA – O senhor pode detalhar o conceito de “inclusão populista”, que usa no livro? Mendes – Inclusão populista é fazer políticas sociais que não se sustentam ao longo do tempo, geram um gasto público grande e beneficiam segmentos de classe média. Assim não se reduz a desigualdade, nem há sustentabilidade fiscal para manter o gasto ao longo do tempo. É um padrão que identificamos na Venezuela, onde há programas sociais, mas a macroeconomia está arrebentada, a inflação dispara, e as contas com o exterior estão desequilibradas. O Brasil está longe dessa situação. Mas, se não tomarmos cuidado com a disciplina fiscal, com as contas públicas, corremos o risco de caminhar para esse cenário. Hoje, o cenário mais provável para nós é a estagnação e continuação de um Estado grande, incapaz de reduzir mais a desigualdade e de fazer a economia crescer mais.
"O governo deu prioridade às regras do petróleo. Podia ter se empenhado na Previdência"
ÉPOCA – A classe média tradicional não se considera elite nem privilegiada. Ela paga muito imposto e sofre com a falta de serviços públicos. Por que ela teria de abrir mão de benefícios? Mendes – É difícil fazer qualquer um abrir mão de qualquer benefício. Precisamos de uma forte administração fiscal, de limites ao gasto do governo, com regras, legislação e instituições que ponham as regras em funcionamento. Ao mesmo tempo, temos de construir um consenso na sociedade e deixar claros os custos e os benefícios de cada projeto. Acabamos de renovar por 50 anos a Zona Franca de Manaus. Ela custa, em benefícios tributários, R$ 20 bilhões por ano, para gerar 500 mil empregos. Cada um desses empregos custa mais de R$ 3 mil por mês. Talvez fosse mais barato dar R$ 3 mil na mão de cada uma dessas pessoas e transferir a produção para outro lugar, onde seja mais eficiente e menos custosa. Ninguém analisa os custos e benefícios. Se todos conseguem extrair do Estado algum benefício, a conta fica enorme, para todo mundo pagar.
ÉPOCA – Que outras políticas atuais o senhor mencionaria, como exemplos ruins, que beneficiam a classe média? Mendes – A principal política social, em qualquer país do mundo, é a educação. Ela cria igualdade de oportunidades e quebra a transmissão da pobreza de uma geração para outra. A educação pública, no Brasil, inverte as prioridades. Deveria se concentrar em atender, com qualidade, crianças de menor renda, na educação pré-escolar e fundamental. Em vez disso, oferece ensino básico ruim. No momento de concorrer por uma vaga na universidade, o aluno de maior renda tem chances maiores de acesso. E o aluno de alta renda gozará os benefícios da universidade pública gratuita. O sistema universitário público gratuito é um grande benefício às classes média e alta. Outro problema de foco é termos muitas políticas para os idosos e poucas para as crianças. Quando olhamos a distribuição de renda, verificamos que 80% das crianças brasileiras vivem em lares abaixo da classe média. E apenas 2% dos indigentes são idosos. É fundamental concentrar os programas sociais nas crianças. Como, aliás, é o caso do Bolsa Família. Não falo em acabar com as políticas que protegem o idoso pobre, mas não faz nenhum sentido dar direito a um idoso de classe média de andar de ônibus de graça. Quem arcará com o custo dessa gratuidade é o trabalhador pobre, que precisa do ônibus para trabalhar. Da mesma forma, não podemos gastar bilhões com o pagamento de aposentadoria ao cidadão de classe média que, pela legislação atual, adquire o direito de se aposentar em torno dos 50 anos de idade, recebendo ao longo da aposentadoria muito mais do que contribuiu.
ÉPOCA – Que políticas para os mais ricos nos atrapalham?
Mendes – Os grupos de mais alta renda, os empresários, demandam benefícios do governo, como crédito público subsidiado, proteção comercial para suas empresas, influência sobre as agências reguladoras. Os subsídios de crédito dados às grandes empresas pelo BNDES custam hoje muito mais que o programa Bolsa Família. O Brasil se fecha à importação de máquinas e equipamentos desde os anos 1940. Os grandes ganhadores dessa política são os industriais e seus empregados. O resto da população paga sob a forma de produtos mais caros, de pior qualidade.
ÉPOCA – O senhor vê algum problema no Bolsa Família? Mendes – É o melhor programa que temos para atingir os mais pobres, com a vantagem de ter um custo bem mais baixo. Quando alguém é muito pobre, não tem condições de planejar a vida, nem a vida do filho, para daqui a um mês. Quando você tira a família dessa situação de forte ansiedade a respeito do dia seguinte, ela ganha condições de pensar no longo prazo. Isso permite comportamentos favoráveis ao cidadão, à família e à economia como um todo. O filho estudará, é possível planejar a poupança.
ÉPOCA – O senhor propõe reformas difíceis de fazer. Com sua experiência de assessor do Senado, que roteiro sugere para um governo que queira fazer mudanças? Mendes – O espaço para fazer reformas é limitado e se restringe ao primeiro ano de governo. A agenda é muito ampla. Por isso, é preciso escolher cuidadosamente a reforma mais importante a fazer. Nenhum governo consegue fazer várias reformas. É preciso definir a mais relevante e jogar todo o peso político na aprovação dela. O governo atual escolheu mal sua reforma prioritária: gastou quatro anos discutindo a mudança do marco regulatório do petróleo, uma legislação que vinha funcionando bem. Perdeu um tempo precioso, que poderia ter sido alocado na discussão de uma reforma da Previdência, ou da legislação trabalhista. (O próximo governo) tem de começar pelo que tem mais peso fiscal (maior gasto) e maior influência nas perspectivas de longo prazo – a Previdência Social. Se conseguirmos fazer uma reforma da Previdência que diminua as despesas, corte privilégios e torne o sistema menos concentrador de renda, daremos um passo em direção a ser um país com maior crescimento e mais igualitário. O desequilíbrio da Previdência, hoje, traga a poupança, que poderia ser usada para investir no crescimento. Além disso, a educação é fundamental. A melhoria da educação melhora a produtividade do trabalhador e dá maior igualdade de oportunidades. Minha terceira prioridade seria a seleção dos investimentos em infraestrutura. Deveríamos fazer investimentos em obras pensando no impacto que eles terão na pobreza e na desigualdade. Falo de saneamento básico e infraestrutura urbana, principalmente nas periferias das grandes cidades. A melhoria na qualidade do transporte público e nas condições de habitação reduz as doenças do trabalhador, deixa o trabalhador mais descansado e satisfeito, aumenta a coesão social, a produtividade e a igualdade de oportunidades.