Folha de São Paulo
Disse em tempos, sei lá onde, que não escrevia sobre o Brasil por dois motivos: ignorância e cortesia.
A ignorância é óbvia: quem vive a milhares de quilômetros de distância, mergulhado nos dramas da Europa, tem pouco de original a dizer sobre as aventuras e desventuras do Palácio do Planalto.
E, além disso, sou convidado estrangeiro desta Folha e, por arrastamento, do país. Quando convido alguém para minha casa, não tolero que o sujeito comece a criticar a qualidade dos sofás ou a limpeza das pratas. Nunca tive tolerância para vagabundos.
Exceções já houve. Mas apenas quando o Brasil excedeu as suas fronteiras e perturbou as minhas.
Reparo agora que esqueci uma terceira justificativa para a minha mudez tropical.
Para que escrever sobre o Brasil quando Reinaldo Azevedo já trata do assunto com elegância, inteligência e coragem?
Sim, eu sei: os "idiotas da objetividade" (ou será da "mendacidade"?) dirão que o meu elogio a Reinaldo é um agradecimento pelos elogios que o próprio deixou na orelha do meu último livro.
Perdoo-lhes, porque eles não sabem o que fazem: os meus elogios a Reinaldo nesta Folha começaram muito antes do "Ideias Conservadoras". Porque sou seu leitor desde os tempos jurássicos de "Contra o Consenso" (se o leitor não conhece a obra, recomendo).
Mas chega de conversa fiada: cavalheiros nunca se explicam, nunca se justificam.
E Reinaldo Azevedo é um cavalheiro. Parte do auditório deve ter rido alarvemente com essa última observação.
Para os foliões, aqui fica a definição tradicional de um "cavalheiro": é aquele que nunca fala grosso com alguém que não lhe pode responder da mesma forma.
Os objetos do desafeto de Reinaldo não apenas podem responder como estão acima dele em poder e influência. Respeito um homem que fala grosso com os de cima –mas nunca com os de baixo.
Mas existe uma outra razão para ler Reinaldo Azevedo e ela está plasmada, da primeira à última página, no livro "Objeções de um Rottweiler Amoroso" (Três Estrelas, 168 págs.; R$ 25), sua mais recente coletânea de crônicas escritas para esta Folha. É que Reinaldo Azevedo não é um "rottweiler", nem sequer "amoroso".
É simplesmente alguém que lembra, com paciência de santo, alguns princípios basilares sobre o funcionamento de uma democracia "saudável". O que espanta em Reinaldo não é o seu alegado radicalismo; é, pelo contrário, o radicalismo de quem combate radicalismos. Exemplos? Não há espaço. Fico apenas nos "highlights".
O terrível rottweiler lamenta a impossibilidade da discordância intelectual civilizada no Brasil –lamenta, nas palavras do próprio, esse entendimento "fascistoide" da política que "busca excluir o outro do mundo dos vivos" (pág. 109).
O terrível rottweiler estranha a ausência de partidos de direita no país por entender que isso é um sintoma de atraso civilizacional (págs. 39-41).
O terrível rottweiler, na melhor tradição liberal, defende constantemente o "império da lei" para limitar os abusos dos homens (pág. 53).
O terrível rottweiler gostaria que o Estado saísse de onde está a mais (no setor bancário, por exemplo) e estivesse onde está a menos (no saneamento, no urbanismo "" pág. 106).
O terrível rottweiler tem vergonha dos 50 mil homicídios que o Brasil oferece anualmente ao mundo (págs. 54-55).
O terrível rottweiler defende a democracia representativa, sobretudo contra aqueles que gostariam de usar o "revólver" contra ela (pág. 120).
O terrível rottweiler defende incondicionalmente a liberdade de expressão –mesmo para aqueles de quem discorda profundamente (págs. 128 e 147).
O terrível rottweiler não permite a confusão ignorante, ou delinquente, entre "direita democrática" e "extrema-direita" (pág. 40).
O terrível rottweiler defende a dignidade do indivíduo (e do individualismo) contra o "pensamento em grupo" que rapidamente degenera em "quadrilha intelectual" (pág. 156).
O terrível rottweiler, enfim, gostaria de um país menos corrupto e mais brioso das liberdades individuais.
Se o livro de Reinaldo Azevedo fosse publicado aqui na Inglaterra (ou nos Estados Unidos, ou até na histérica França), ninguém levantaria uma pálpebra.
No Brasil, parece que provoca fúrias e desmaios.