O cientista político Humberto Dantas busca há mais de dez anos uma reforma política, mas por uma vertente diferente do que está sendo proposta em discursos por aí: ele defende a educação política do eleitorado como instrumento de transformação. Com mais de 300 turmas formadas em cursos conduzidos por parceria com diversos ramos da sociedade civil, ele afirma que o primeiro passo para transformar o sistema atual é a educação, critica a proposta de
Dilma Rousseff de convocar um referendo, questiona o movimento civil pelo Plebiscito Constituinte – que reuniu 7,7 milhões de assinaturas –, e condena a intervenção do Poder Judiciário no tema.
Em entrevista a ÉPOCA, o professor do Insper e da FESP-SP explica porque mudar o sistema de eleger representantes não resolveria os problemas políticos brasileiros e ainda aponta outras mudanças necessárias que não alteram o sistema eleitoral.
ÉPOCA – Há muitos anos são discutidas propostas de reforma política, mas elas ganharam maior atenção dos políticos desde que a população foi às ruas em 2013. Trazer a reforma política como bandeira se tornou uma resposta fácil? Humberto Dantas – Sim. É a justificativa mais simples para enfrentar o problema mais complexo. É a justificativa da classe política para dizer que a classe política daria as respostas que a sociedade quer, se ela fosse escolhida de outra forma. Mas não é verdade.ÉPOCA – Foi dessa forma que a presidente Dilma Rousseff respondeu aos protestos no ano passado e reafirmou ao vencer as eleições neste ano... Dantas – É preocupante ver o Executivo apresentar suas propostas como a capacidade de ler as vontades do povo que foi às ruas. Aí temos um Executivo que afirma entender o que ouviu das ruas, e diz que “a população quer uma reforma política por meio de uma constituinte exclusiva”. O vice negou. “Por meio de um plebiscito”. O Congresso negou. “Então por meio de um referendo”, que é uma consulta pública, mas referendo sobre o que? Que sociedade está pronta para decidir o sistema político partidário eleitoral? Plebiscito e referendo não são laboratório de pedagogia política. Então, quer dizer que vai vencer de novo quem tiver a melhor propaganda? Vai vencer a musiquinha mais bonitinha como aconteceu em 1993? No embate entre República e Monarquia? Que cidadão de 39 anos sabe qual a diferença entre presidencialismo e parlamentarismo, já que um plebiscito educa tanto? Em uma consulta pública, as pessoas precisam já ser educadas para poder participar. A ordem é inversa. As pessoas não estão preparadas para isso, definitivamente.
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É muito difícil de acreditar que o Brasil está preparado para discutir financiamento de campanha, se quer lista fechada ou aberta. E com um detalhe que eu acho o mais importante de todos: você leva perguntas para a sociedade e corre o risco de gerar como resposta combinações completamente perversas. Vamos pensar em uma delas: vamos supor que chegássemos à conclusão em um referendo que o sistema continuasse proporcional de lista aberta [em que os eleitores escolhem seus candidatos individualmente e não votam no partido], só que com o sistema de financiamento público de campanha. É um sistema fadado ao fracasso. Como se conseguiria dinheiro público para financiar 450 mil candidatos em uma eleição municipal? Que é o número de concorrentes que temos hoje. Estamos falando de um sistema, que funciona bem quando os elementos combinam bem. O sistema político é algo imensamente mais harmonioso do que se pode imaginar. Então não vai ser desse jeito que as coisas vão melhorar.ÉPOCA – Se a proposta fosse de outro presidente seria diferente? Dantas - Não. Não quero viver no sistema político eleitoral da presidente Dilma Rousseff, nem do Aécio Neves, nem da Marina Silva, nem do FHC e nem do Lula. Eu quero viver no sistema do Poder Legislativo brasileiro. Se ele é ruim, a responsabilidade é nossa. O presidente nunca será eleito por 100% dos eleitores, portanto, nunca será a clara imagem da população. A representatividade plural é exercida pelo parlamento e se ele precisa melhorar que a gente comece a entender o que efetivamente o Congresso pode fazer pela vida do cidadão. Por isso que volto a insistir que a reforma política começa pela conscientização das pessoas.
"Em uma consulta pública, as pessoas precisam já ser educadas para poder participar. A ordem é inversa. As pessoas não estão preparadas para isso, definitivamente"
ÉPOCA – O Judiciário brasileiro é muito ativo sobre questões eleitorais. Mesmo durante a campanha demonstrou interesse de retomar a cláusula de barreira, por exemplo. Como você vê essa participação? Dantas – Eu acho uma participação trágica. Acho pior do que a do Executivo. Eu quero um judiciário que julgue, eu quero um judiciário que puna, que leia a lei como ela foi escrita e não que interprete com sabor de legislador. O judiciário legisla em questões eleitorais neste país como poucos órgãos conseguiram legislar. E não é porque é um Supremo Tribunal Federal com x ministros indicados pelo PT, como se diz pela internet, é porque a função dele não é esta.
Nós temos um judiciário que legisla sobre o tema eleitoral infinitamente mais do que qualquer poder deste país, seja por interpretações de leis, seja por aplicar leis eleitorais, mas temos um judiciário ultra-ativo, que chamamos de policy maker . O judiciário é, infelizmente, um agente central neste tema.
O problema é que algumas dessas interpretações vão contra a própria Constituição Federal, a regra de número máximo de vereadores por cidade é o exemplo mais claro disso. A Constituição dá liberdade expressiva para as cidades definirem a quantidade de vereadores e a Justiça Eleitoral legislou dizendo que entendia que havia um número máximo de vereadores para cada cidade. O que faz com o que Legislativo corra atrás dessas decisões para alterá-las depois.
ÉPOCA – Mesmo com tantas forças buscando, por que a reforma política não sai do papel, então? Dantas - Sai do papel, mas não como alguns esperam que ela saia. Não sai a reforma do partido A, do jornalista B, do grupo de comunicação C... E que bom que não sai, porque eu não quero viver no país do partido A, da revista D, eu não quero viver em um país desenhado singularmente e unilateralmente por algum partido ou organização. Essa reforma já modelada não vai sair mesmo, mas saem projetos menores. E já saíram grandes projetos como a reeleição, a cláusula de barreira... Não estou dizendo que são boas ou ruins, mas são expressivas. O que me leva a perguntar: a gente quer reformar ou avançar? Pode ser que ajustes sejam melhor do que reformas.
Vamos voltar e pensar em que medida a reforma política vem sendo discutida no Brasil. Eu vou tomar a Constituição de 1988 como ponto de partida. Desde então, nós nunca tivemos uma eleição com as mesmas regras do que a anterior. Sempre ocorreu alguma mudança, algumas mais profundas, outras mais amenas, mas sempre com alguma diferença. Desde 1988 também se discute a necessidade de uma reforma política. E tivemos inclusive uma consulta popular associada a uma lógica muito relevante em relação à reforma política. Em 1993, as pessoas falaram sim em relação ao presidencialismo em oposição ao parlamentarismo e sim para a República em relação à Monarquia.
Outro ponto interessante de ser pontuado é que desde 1988 até hoje nós tivemos duas leis de iniciativa popular, entre raras leis que surgiram da população, relacionadas à reforma política. A
lei 9840 , que deixa claro o que é o crime de compra de voto e que é proibido o uso da máquina pública durante a campanha. Por mais que ainda exista muita compra de voto no Brasil e por mais que seja absolutamente comum o uso da máquina pública em benefício de campanha. A outra é a lei da
Ficha Limpa . Portanto, ao longo dos últimos 26 anos nós tivemos várias iniciativas de reformas políticas.
A gente sonha com grandes reformas políticas, e eu não sei se isso é bom, não concordo que seja, mas o resultado são minirreformas políticas, como as que tivemos em 2006 e 2013. E o nome já diz tudo: são pequenas e estão aquém do que se imagina como solução.
Os partidos também são protagonistas das pautas de reforma política com ideia próprias, e talvez estas sejam as melhores propostas, mas são impossíveis de serem implementadas juntas já que são excludentes. E, obviamente, em um Congresso fragmentado, dificilmente alguma delas será aprovada. O que é bom, é da democracia. Se não se chega a uma ideia que celebre o interesse da maioria, fica-se como está. É do jogo.
ÉPOCA – O Movimento 'Plebiscito Constituinte' reuniu a assinatura de mais de 7,7 milhões de pessoas e reuniu centenas de instituições da sociedade civil. Como esse tipo de iniciativa se enquadra nesse cenário? Dantas – É um volume imenso, representativo, legítimo e que merece ter sua opinião, mas ele não representa o todo e sim uma parte pequena da população. 7,7 milhões de pessoas refletem os desejos de cerca de 5% do eleitorado brasileiro e minorias barulhentas não podem representar maiorias silenciosas. O que os demais querem? E mesmo entre ele, aderiram a que, de que forma e convencido por quem? Sabem efetivamente o que assinaram? Será que existem 7 milhões de pessoas no Brasil que são capazes de me dizer o que é constituinte exclusiva para discutir o sistema partidário eleitoral? Meu sonho é que essa resposta seja sim, durmo e acordo todo dia sonhando que as pessoas saibam com clareza definir o que é melhor para elegermos políticos, mas tenho para mim que isso é difícil de ser uma realidade hoje. Ainda assim, acho que o movimento é legítimo e deve ser levado adiante, mas o país ainda não tem maturidade suficiente para uma constituinte exclusiva para a reforma política e tampouco para plebiscitos e referendos em relação a essas temáticas. Acredito nos órgãos eleitos de representação que nós temos, como o Parlamento, trabalhando sob a pressão da sociedade. Por isso, acho legítimo e importante que milhões de pessoas se reúnam para defender a constituinte ou outras ideias, ao menos estamos movimentando pessoas em torno de ideias.
ÉPOCA – As pessoas se mostraram muito interessadas em discutir ideias nas redes nessas eleições... Dantas – Outra prova de que o brasileiro não está preparado para definir um novo sistema político. Uma sociedade que acredita que o Brasil vai virar uma república bolivariana, que acredita que os militares podem ser bons de volta ao poder, que acredita que a Dilma seja uma reencarnação do Hugo Chávez, e outros absurdos que ultrapassam em muito os limites do debate democrático ditas durante a campanha nas redes sociais mostram isso. É uma sociedade da intolerância jogando um jogo em que a tolerância é a regra número um. A democracia tem como pressuposto essencial a ideia da tolerância. Se não estamos preparados para conviver, não estamos preparados para construir juntos um projeto para a sociedade, infelizmente.
"Se não estamos preparados para conviver, não estamos preparados para construir juntos um projeto para a sociedade"
ÉPOCA – Para você não há necessidade de uma mudança do sistema eleitoral então? Dantas – Não necessariamente. Quem disse que reforma política é a reforma do sistema eleitoral do país? Quem disse que reforma política não passa por uma mudança expressiva no funcionamento do Judiciário? Quem disse que não passa por uma revisão do pacto federativo no Brasil? Quem disse que não passa por uma ideia de como devemos contratar os nossos servidores públicos para que sejam selecionados de uma forma menos política e mais técnica? Quem disse que não passa por uma reformulação da educação do país? Por uma ideia de formar mais do que vestibulandos, mas realmente cidadãos?
>> Adam Sharp: "A tecnologia evoluiu, mas a política continua igual " As coisas vão melhorar a partir do momento em que a gente entenda que isso é um sistema, que os partidos políticos conhecem bem o funcionamento dele, por mais desvalorizados que eles sejam para a sociedade.
Eu acho que estamos muito distantes de pensar o que realmente poderia ser essa reforma política, por que as pessoas estão querendo fazer a população acreditar que só muda algo, se mudarmos o jeito de contratar, até para legitimar o que está aí. Não vai, eu tenho 100% de certeza disso. E se fizermos uma reforma política, teremos um esforço tremendo e continuaremos a ter aberrações de hoje com novas roupagens.
"Não podemos mais empilhar eleitores atrás da urna sem um mínimo de conhecimento formal acerca do contexto político brasileiro"
ÉPOCA - O que deveria ser feito, então? Dantas - Deveríamos ter em primeiro lugar uma mudança na vertente administrativa. Tem de haver uma descentralização no pacto federativo do Brasil e uma melhoria expressiva da forma do poder público contratar neste país, usando critérios técnicos mais rigorosos que, consequentemente, diminuiria o uso político da máquina pública em benefício de campanhas e governos. Em segundo lugar, tem de haver uma reforma do Judiciário, para que ele se torne o mais transparente possível, para que ele possa zelar por aquilo que de fato ele tem que fazer e que ele seja capaz de se autopunir também, afinal não é possível imaginar que haja corrupção no Executivo e no Legislativo, mas não haja no Judiciário. Então, precisamos passá-lo a limpo. Precisamos arrefecer o corporativismo que existe em torno das carreiras jurídicas. Isso para mim é uma das maiores reformas políticas imagináveis na história deste país. E em terceiro lugar é preciso encarar a educação política como algo absolutamente necessário. Não podemos mais empilhar eleitores atrás da urna sem um mínimo de conhecimento formal acerca do contexto político brasileiro.