sexta-feira, 14 de abril de 2023

'Os crimes nas escolas e os oportunistas do caos', por Edilson Salgueiro e Joice Maffezzolli

 

Homem presta homenagem às vítimas da creche Cantinho Bom Pastor, em Blumenau, Santa Catarina (7/4/2023) | Foto: Taba Benedicto/Estadão Conteúdo


Em meio aos ataques homicidas contra estudantes e professores em escolas, ministros de Lula e jornalistas da velha imprensa escarnecem das vítimas ao proferir discursos ideológicos


Quarta-feira, 5 de abril de 2023, 7 horas da manhã. Luiz Henrique de Lima invadiu a escola infantil Cantinho do Bom Pastor, em Blumenau (SC). Empunhando uma machadinha, cabeça raspada, o homem de 25 anos e 1,80 metro de altura matou quatro crianças — três meninos e uma menina, com idades entre 4 e 7 anos. A tragédia teria sido ainda mais assustadora se não fosse a coragem de outros quatro estudantes, que resistiram aos sucessivos golpes que receberam. Os sobreviventes foram encaminhados para o Hospital Santo Antônio, onde permaneceram por 24 horas. O enterro das vítimas ocorreu um dia depois do ataque, sob clima de desolação. 

Uma semana antes, em 27 de março, um adolescente de 13 anos de idade entrou na Escola Estadual Thomazia Montoro, na Vila Sônia (SP), e esfaqueou até a morte a professora Elisabete Tenreiro, 71 anos. Ele ainda feriu dois alunos e outras três docentes antes de ser preso pela polícia. 

Elisabete Tenreiro era professora de ciências | Foto: Reprodução/Redes Sociais

Esses atentados desencadearam centenas de ameaças a escolas do país, como no Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Manaus, Goiás e São Paulo. Este último apresenta o cenário mais alarmante. De 27 a 31 de março, foram identificadas pela Polícia Civil 279 suspeitas de ataques no Estado — 56 por dia. Isso representa um aumento expressivo no número de casos. De 1º de janeiro a 26 de março, ocorreram 82 ameaças do mesmo tipo (800% a menos). 

Um pânico generalizado se estabeleceu no Brasil, com as famílias temendo a iminência de novos atentados. A onda de medo teve como catalisador o compartilhamento de mensagens, fotografias, vídeos e áudios com supostas ameaças em grupos de WhatsApp. Os propagadores alertam para um possível ataque em massa em 20 de abril, aniversário de 24 anos do massacre de Columbine. Naquele dia, em 1999, os norte-americanos Eric Harris e Dylan Klebold invadiram uma escolha e metralharam 37 pessoas. Dez morreram. 

Oportunistas do caos 

Nem mesmo esse cenário aterrorizante despertou a compaixão dos oportunistas do caos. No momento em que os pais tentam sobreviver à trágica perda dos filhos, os militantes instalados em gabinetes, redações jornalísticas e universidades constroem palanques sobre as vítimas. 

O ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, deu início à onda de discursos insolentes. “Vamos esperar chegar ao número dos Estados Unidos, considerados modelo por muita gente aí?”, perguntou. “Essa gente cultuando arma, querendo dar golpe de Estado.”

A indecência seguiu pelos estúdios dos telejornais. Um dos principais comentaristas da GloboNews, Octávio Guedes atribuiu ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) os ataques que culminaram na morte de crianças inocentes. “Isso é problema de uma sociedade doente”, disse o jornalista. “Adoecida por um discurso de ódio contra a escola, segundo o qual a escola é um partido político, as universidades são antros de maconheiros, os professores não estão ensinando coisas decentes e o bom é o homeschooling. Temos um caldo dentro desse discurso de ódio, que identifico a extrema direita. Isso levou Bolsonaro ao poder, como a grande propagadora desse discurso.”

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, praticamente subscreveu as afirmações de Guedes. Segundo o ex-governador do Maranhão, os ataques contra crianças em escolas e as manifestações do 8 de janeiro estão interligados. “Tem influência da ideia de violência extremista a qualquer preço, a qualquer custo”, afirmou.

A pesquisadora Luka Franka reforçou o elenco de discursos oportunistas, com o relatório intitulado “O Extremismo de Direita entre Adolescentes e Jovens no Brasil: Ataques às Escolas e Alternativas para a Ação Governamental”. No estudo, entregue ainda no ano passado à equipe do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a pesquisadora alega que “os alvos de cooptação pelo discurso de extrema-direita [sic] são majoritariamente adolescentes brancos e heterossexuais, e a misoginia exerce um papel crucial no processo”.

Expectativa versus realidade

Apesar de Silvio Almeida ter culpado um suposto culto às armas pelos atentados em Blumenau e São Paulo, os assassinos usaram facas e machadinhas — o que não impediu o massacre de inocentes. E os vândalos responsáveis pela depredação das sedes dos Três Poderes, em Brasília, nunca atacaram escolas.

Ao contrário do palavrório de Octávio Guedes, Bolsonaro jamais defendeu discursos que incentivassem assassinatos em escolas. Sob o governo do ex-presidente, o país mandou às favas a política de desencarceramento — pauta cara à esquerda — e reforçou as polícias. Resultado: queda vertiginosa no número de homicídios. Nessa política de segurança pública, por exemplo, os assassinos de São Paulo e Blumenau seriam presos terminantemente.

Tampouco o homeschooling poderia ser responsabilizado pelos ataques em massa, visto que o modelo de educação domiciliar não prevê a destruição das escolas. A iniciativa apenas tem o objetivo de dar aos pais a possibilidade de educarem seus filhos em casa. Não há registro de praticantes de homeschooling terem assassinado crianças em escolas públicas.

Por último, mas não menos importante, o discurso feminista de Luka não encontra sustentação na realidade. Somados, os atentados em São Paulo e Blumenau tiveram cinco mortes — três homens e duas mulheres. Em Columbine, há 24 anos, morreram oito homens e quatro mulheres. A maioria das vítimas é de homens.

Pais distantes, games próximos 

Alheias aos discursos ideológicos dos gabinetes, das redações jornalísticas e das universidades, as famílias buscam compreender as razões dos atentados em escolas. Segundo a psicanalista infantil Mônica Pessanha, especializada em mães e filhos, o uso excessivo dos games pode levar os jovens a cometerem assassinatos em massa. Isso porque os jogos estimulam a liberação de dopamina, um neurotransmissor que causa sensação de prazer, euforia e conforto. “É importante os pais entenderem que não é adequado permitir às crianças e aos adolescentes ficarem horas em jogos violentos”, observou a psicanalista. “Um dos efeitos da exposição excessiva pode ser a noção de que o uso da violência justifica a resolução de conflito.” 

Mônica disse ainda que os pais têm de ficar atentos ao comportamento dos filhos, principalmente em relação à agressividade, à timidez e à ansiedade. Ela acrescentou que o diálogo com as escolas também é essencial, visto que os jovens passam um longo período da infância na companhia dos professores. “A gente precisa participar mais, para entender melhor nossos filhos e para protegê-los”, afirmou, ao sugerir que as escolas também poderiam contribuir para esse processo. “É possível criar espaços de diálogo e trazer profissionais para falar sobre bullying, jogos, redes sociais e outros assuntos.” 

Mônica Pessanha é especialista em mães e filhos | Foto: Divulgação 


Idolatria a homicidas
 

O massacre na Columbine High School, em 1999, deu início à série de ataques contra escolas e universidades. Conforme a escritora e jornalista Madeleine Lacsko, especialista em Cidadania Digital e estudiosa da chamada deep web, os assassinos norte-americanos pertenciam a uma subcultura digital que idolatrava a morte. “Eram dois meninos com ódio da sociedade que começaram a fazer manuais de como prejudicar pessoas e montar bombas”, observou, ao lembrar que a polícia rechaçou possíveis investigações de Eric Harris e Dylan Klebold. “Eles começaram o que até hoje existe e faz sucesso: as postagens com fantasias violentas envolvendo pessoas conhecidas.” 

De lá para cá, os homicidas se tornaram ídolos em fóruns de conversas na deep web — uma parte da internet não acessível aos navegadores convencionais. Ali, constata Madeleine, jovens sem propósitos falam dos assassinos como se fossem heróis. “Isso inicia uma subcultura com um conjunto de valores próprios, muito atraente para adolescentes problemáticos”, disse a jornalista. “A grande maioria dos frequentadores desses fóruns tem a fantasia mórbida de imaginar como seria assassinar os outros. Sente prazer ao falar disso, ao compartilhar fotos de cadáveres e vídeos de assassinatos. Mas, ali no meio, também tem quem queira levar essa fantasia para a realidade.” 

Madeleine Lacsko é autora do livro Cancelando o Cancelamento | Foto: Reprodução/Facebook

O massacre de Suzano (SP), em 13 de março de 2019, é um símbolo das práticas desses grupos. Os assassinos — dois jovens de 17 e 25 anos — invadiram a Escola Estadual Raul Brasil e atiraram contra professores e estudantes. Eles mataram cinco alunos, duas funcionárias e um comerciante. Outras 11 pessoas ficaram feridas, mas sobreviveram. 

Na época, os homicidas revelaram que tinham o objetivo de superar o número de mortes em Columbine. “Como já estavam inseridos nessa subcultura, acabaram mais famosos que os autores dos outros nove massacres escolares ocorridos no Brasil em 2019”, lembrou Madeleine. “Eles não conseguiram superar o número de mortos. Assassinaram oito pessoas. Depois, um dos atiradores matou o outro e cometeu suicídio.” 

O suicida é Guilherme Taucci Monteiro, ídolo nacional dos assassinos da deep web. A máscara que usava, com a estampa de uma caveira, praticamente se transformou num uniforme oficial dos simpatizantes. Muitos divulgavam imagens e vídeos com máscaras similares no rosto, quase sempre com mensagens ameaçadoras. Essas publicações se restringiam ao submundo da internet. Agora, os homicidas em potencial compartilham nas redes sociais abertas seus planos de cometer assassinatos em escolas. 

No Twitter e no Instagram, é possível encontrar diversos perfis com o sobrenome Taucci — uma homenagem ao suicida. É o caso do assassino da Escola Estadual Thomazia Montoro, na Vila Sônia (SP). Ele usou a máscara com estampa de caveira, tinha o nickname Taucci e anunciou seus planos homicidas. 

Prints de publicações ofensivas no Twitter e no Instagram

A dor dos sobreviventes 

Nadja Gomes, 49 anos de idade, é mãe de uma sobrevivente do massacre de Suzano. A filha, Susan, tinha 16 anos na época do atentado e hoje tem 20. Nadja desenvolveu crises de pânico, sofre constantemente com problemas no coração e precisa usar uma prótese para manter seus batimentos cardíacos.  

Quem também luta para superar o trauma é Andreia Moreira, 49 anos. Ela é mãe de Rosnei Marcelo, o Keké. Na época com 15 anos de idade, Keké ficou diante de Guilherme Taucci Monteiro na Escola Estadual Raul Brasil. Durante o ataque, o homicida olhou fixamente para o alvo e apertou o gatilho do calibre .38 que segurava nas mãos — mas não havia mais balas. “Quando o assassino recarregou a arma, meu filho saiu correndo e conseguiu fugir”, contou.  

Nadja e Andreia se tornaram amigas | Foto: Joice Maffezzolli/Revista Oeste

Três anos depois, aos 18 anos de idade, Keké decidiu subir no telhado do vizinho para buscar o gato da família. Morreu ao bater a cabeça na fiação e sofrer uma descarga elétrica. “Hoje, não tenho mais o meu filho”, lamentou Andreia. “Continuo sofrendo, porque tenho outra criança com 14 anos de idade. Em homenagem ao meu filho, vou lutar para ter segurança nas escolas.” 

Tanto Keké como Susan conheciam Taucci, ex-aluno da escola em Suzano. Segundo os sobreviventes, o assassino costumava rondar a porta da instituição de ensino. “Um ano e meio antes do atentado, Taucci disse para o meu filho que iria voltar e matar os meninos que o zoavam”, revelou Andreia. “Ele pediu que meu filho ficasse em paz, porque não seria alvo dos ataques.” 

Keké morreu, aos 18 anos de idade | Foto: Divulgação/Arquivo pessoal

No momento do atentado, Susan disse ter reconhecido o assassino. “Ela não gostava do jeito que Taucci a olhava”, disse Nadja, ao contar as lembranças da filha. “Ela se sentia mal.” Quando o homicida apontou a arma, Susan relatou que ficou de joelhos. Taucci disparou, mas o tiro atingiu o garoto ao lado. “O sangue do menino jorrou nela”, lembrou a mãe. “O assassino recarregou a arma, e isso foi a deixa para Susan fugir.” 

Taucci e o comparsa, Luiz Henrique de Castro, usaram um calibre .38 e um machado para assassinar inocentes. Depois de alvejar os alunos, o suicida matou seu parceiro de crime e atirou contra a própria cabeça. Um terceiro indivíduo, de 17 anos de idade, foi condenado pela Justiça. Apesar de não ter participado diretamente do atentado, o jovem é considerado seu mentor intelectual. Atualmente, está em liberdade. 

Soluções de curto prazo 

O governo federal anunciou que disponibilizará R$ 150 milhões para os Estados e os municípios ampliarem as rondas policiais no entorno das escolas. Os recursos pertencem ao Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), do Ministério da Justiça. Segundo o ministro Flávio Dino, o governo também vai ampliar de dez para 50 o número de policiais que participam do grupo de monitoramento da deep web e da dark web. “Estamos vendo, neste instante, uma ideia de pânico”, afirmou. “Há ameaças em relação a outras escolas e universidades. Estamos com 50 policiais, que vão se dedicar exclusivamente ao monitoramento dessas ameaças na internet.” 

As políticas estaduais ainda estão em fases de ensaio. Em Santa Catarina, por exemplo, haverá seguranças armados nas escolas. Com um custo de R$ 70 milhões ao ano, a iniciativa deve contemplar mais de mil unidades de ensino da rede pública. Além de policiais militares da ativa, o Estado planeja chamar profissionais aposentados. O projeto deve sair do papel em 60 dias. São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás e Manaus, que também foram palco de ataques homicidas, optaram por aumentar as rondas nos arredores das escolas e reforçar as câmeras de segurança nas partes internas. 

Feridas reabertas 

As lembranças de 13 de março de 2019 voltam a atormentar os sobreviventes sempre que um ataque a escolas ocorre no país. “Vendo os outros pais, a dor deles, isso corrói a gente por dentro”, disse Nadja. “É muito difícil.”  

Andreia e Nadja afirmam que pintar os muros das escolas e deixá-las bonitas não é suficiente para conter os atentados. A ronda policial em frente às instituições de ensino também não deve evitar novas tragédias, segundo as mães. “Os adolescentes estão perdidos”, alertam. “Aqueles que mataram estavam doentes. Isso vem de casa. A gente está fazendo a nossa parte. E lá fora, como está? É preocupante.”  

Desde o ataque em Suzano, 15 pais formaram um grupo para ajudar outras escolas, crianças e adolescentes. Eles promovem diversas palestras, com o intuito de auxiliar os estudantes. Esses pais alegam que a falta de cuidado com os filhos pode levar os jovens a cometerem assassinatos. 

“Se estamos preocupados com nossos filhos, de quem estamos cuidando, imagine com aqueles que estão abandonados”, ponderou Nadja. “Como está a cabeça deles? Vai chegar um momento em que ninguém vai querer ir para a escola. E os professores também não vão querer dar aula, porque é um conjunto. O Estado e a sociedade devem fazer alguma coisa”.  

Em homenagem a Keké, Andreia disse que continuará lutando. “Hoje, meu filho não está aqui”, lamentou. “Mas, quando estava vivo, pediu que eu lutasse. E vou lutar mais ainda por ele não estar aqui. Meu filho queria que a gente lutasse por segurança dentro das escolas.”  

O poder público também precisa ajudar Andreia e Nadja nessa batalha. A contribuição passa por diversos fatores, como a criação de ambientes que estimulam a convivência harmônica entre os estudantes; o monitoramento de fóruns da deep web; um controle rígido de acesso às escolas; e o cuidado com a saúde mental das crianças, com a participação efetiva dos pais. Não há tempo para postergar essas decisões.

MP
Foto: Reprodução/Canva

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