O ataque à pintura Girassóis, de van Gogh, é uma forma de repúdio à civilização humana
Girassóis, de Vincent van Gogh, captura um raro momento de otimismo em uma vida cheia de atribulações. Em fevereiro de 1888, van Gogh alugou um imóvel em Arles, no sul da França, que ficaria conhecida como “Casa Amarela”. Ele imaginou o local como um refúgio para artistas e convidou Paul Gauguin para se juntar a ele. Van Gogh esperava decorar a casa com pinturas de girassóis, 11 das quais foram produzidas (mais tarde, uma seria destruída em um ataque aéreo no Japão). Com os tons intensos e brilhantes de amarelo, essas pinturas estão tomadas pela sensação de esperança e oportunidades de van Gogh — um forte contraste com os sombrios tons de azul violeta do autorretrato feito num hospício em Saint-Rémy um ano antes de seu suicídio.
O impacto de Girassóis é tão grande que a obra se tornou um ícone, o que explica por que, alguns dias atrás, ativistas do grupo Just Stop Oil decidiram cobri-la com sopa de tomate, numa tentativa de chamar atenção para a sua causa. As duas jovens que vandalizaram a pintura sabiam que a filmagem viralizaria, e que pessoas como eu escreveriam artigos sobre isso. Em outros trechos on-line, uma das ativistas faz uma pergunta retórica: “Vocês estão mais preocupados com a proteção de uma pintura ou com a proteção do nosso planeta e das pessoas?” Seu sotaque é conciso e refinado. Nenhuma surpresa nisso — estamos acostumados a ouvir sermões sobre opressão pelos mais privilegiados da sociedade.
Aqueles que são solidários à sua causa logo defenderam suas ações e comentaram que a pintura não sofreu danos devido à sua proteção de vidro. “Jogar sopa no vidro não é um crime grave”, alguém tuitou. “Fiquei emocionada”, disse outra pessoa. “Pensei, bom, espero que os seres humanos possam ver essa pintura daqui a mil anos. Isso não vai acontecer se a civilização for destruída por enchentes.” O impacto visceral de ver uma obra-prima profanada é exatamente o objetivo. A intenção dos ativistas é perturbar, e nisso sua missão foi cumprida.
Um câncer a ser extirpado
Mas o ato também é um reflexo de uma linha de pensamento que atravessa a ideologia de tantos ativistas do momento. Para aqueles que se identificam como “os que estão do lado certo da história”, existe uma ideia de que a civilização ocidental em si é um câncer que precisa ser extirpado. Ela foi construída com base em estruturas de poder heretonormativas, cis-patriarcais e de supremacia branca que perpetuam injustiças e fortalecem as elites.
Muitos dos ativistas ambientais de hoje em dia são fruto dessa visão de mundo obcecada com o identitarismo. É por isso que Stuart Basden, cofundador do Extinction Rebellion, argumenta que seu movimento “não trata do clima”, sua preocupação é acabar com a supremacia branca, o patriarcado, o eurocentrismo, a heteronormatividade e a hierarquia de classes. Como afirmou outro ativista: “A justiça ambiental é a intersecção entre a justiça social e movimento verde, em que a desigualdade na degradação ambiental também é levada em consideração”.
Esses ativistas que têm uma falta de consideração tão óbvia pelas grandes obras-primas da história deviam nos preocupar a todos
De acordo com o alto clero dessa nova religião, é através dessa lente que todas as atividade humanas, incluindo as artes, devem ser vistas. Desta forma, a Mona Lisa não passa de óleos e pigmentos pintados sobre madeira por um homem branco poderoso em benefício de outros homens brancos poderosos. A arte é reduzida a uma tomada de poder elaborada, e é por isso que museus e bibliotecas muitas vezes se tornam alvos da “descolonização”. Essa também é a razão para a ausência de escrúpulos do ativista que jogou bolo na Mona Lisa em maio, em uma tentativa de aumentar a conscientização para a mudança climática. “Pense na Terra!”, ele gritou, “existem pessoas que estão destruindo a Terra!”.
Uma testemunha relatou que o vândalo da Mona Lisa tentou romper a proteção de vidro para danificar a pintura em si. É por isso que não estou convencido de que as ativistas do Just Stop Oil na National Gallery teriam hesitado em jogar sopa de tomate na obra-prima de Van Gogh se não houvesse uma proteção de vidro. Estamos lidando com uma mentalidade catastrófica que vê a arte como pouco mais que o passatempo fútil, uma distração para uma causa maior. As próprias ativistas afirmaram isso. Para elas, Girassóis é apenas “uma pintura”.
A arte representa o ápice da conquista humana e nos oferece um raro vislumbre dos numinosos que iluminam nossa existência. Para os ativistas interseccionais, a arte e a literatura não passam de outras manifestações da busca por poder. Vimos isso nas tendências recentes da crítica, em que a arte é julgada com base em estar ou não de acordo com a “mensagem” aprovada. Diante de uma obra tão monumental quanto Guernica, de Picasso, esses ativistas enxergariam algo além do trabalho de um misógino que maltratava esposas e amantes, um tributo aos opressivos sistemas de controle patriarcais?
Os ataques à arte têm um efeito tão visceral porque representam para nós uma forma de repúdio à civilização humana. Ao ver imagens televisionadas de seu livro Os Versos Satânicos sendo queimados nas ruas de Bradford, em janeiro de 1989, Salman Rushdie foi tomado por uma sensação de que “a vitória do Iluminismo pareceu temporária, reversível”. A incineração de um exemplar de um livro pode ser inofensiva, mas a simbologia do gesto é potente e feia.
A destruição da arte é sempre um gesto autoritário, o que talvez explique por que é tão atraente aos ativistas do presente que consideram os valores da civilização ocidental essencialmente tóxicos. Enquanto os luminares dos direitos humanos do passado se opunham ao autoritarismo em todas as suas formas, muitos dos autoproclamados ativistas das guerras culturais de hoje em dia protestam em apoio ao autoritarismo. Quando o órgão responsável pelas escolas de ensino fundamental no sudoeste de Ontário, no Canadá, autorizou uma “cerimônia de purificação pelo fogo”, em que livros contendo estereótipos raciais antiquados foram retirados das prateleiras da biblioteca e queimados ritualisticamente, esses responsáveis presumivelmente acreditam estar ao lado dos anjos. Não tenho dúvidas de que membros do Taleban que demoliram estátuas do Buda de Bamiã, em 2001, acharam a mesma coisa.
Esses ativistas que têm uma falta de consideração tão óbvia pelas grandes obras-primas da história deviam nos preocupar a todos. A única razão pela qual o dano foi limitado até agora é por que seus alvos tendem a ser as obras mais famosas, que estão protegidas por vidro. Muitos dos nossos grandes tesouros não estão tão bem guardados. Quanto tempo vai levar até que um ativista coloque fogo em um Ticiano, ou risque frases de cunho político em um Botticelli com um canivete? Se você acha que eles não chegariam a esse grau de tacanhez, você não entendeu a crueldade de sua doutrina.
Andrew Doyle é autor de The New Puritans: How the Religion of Social Justice Captured the Western World
Leia também “A conspiração da feiura”
Revista Oeste