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A doutrina política da revolta é mera versão intelectualizada da soma da frustação social, emocional, econômica — e, frequentemente, amorosa
“[…] este mundo é um vale de lágrimas.
Não espere que haja justiça nele.
Os ímpios, em sua arrogância, crescem como um cedro frondoso.
Os bons estão fadados a ser permanentemente traídos e decepcionados.
O melhor que podemos esperar é que um equilíbrio entre diferentes senhores,
entre males maiores e menores, permita que os humildes desfrutem de uma prosperidade moderada e temporária.
Dê o melhor de si para encontrar o seu caminho até essa clareira na selva.”
James Burnham, O Suicídio do Ocidente, Vide Editorial, 2020, p.9
Avida é dura. Viver é difícil para a maioria das pessoas. Todo mundo tem um inventário de derrotas e perdas para chamar de seu. Todos travamos batalhas contra os acidentes, incidentes e perigos da vida: doenças, desemprego, falta de dinheiro. Em cada esquina nos espera um criminoso ou um pilantra.
A maioria dessas batalhas lutamos sozinhos.
Ao longo da vida conquistamos e perdemos oportunidades, pessoas queridas, empregos, patrimônio e saúde. Às vezes, conseguimos recuperar as perdas; muitas vezes, não. A vida é feita dessa instabilidade.
A maioria das conquistas requer esforço, sacrifício, preparo e, sempre, boa dose de sorte. Sorte é essencial: o mundo está cheio de pessoas generosas, brilhantes, trabalhadoras e estudiosas que lutam diariamente no limite da sobrevivência e terminam a vida sem ter seu valor reconhecido — e, muitas vezes, doentes, pobres e sós.
Essa é a realidade da vida.
Nós todos conhecemos histórias de pessoas que vieram do nada e construíram fortunas e impérios. Todos conhecem Steve Jobs, o fundador da Apple, e Elon Musk, o bilionário dos carros elétricos. Mas quem já ouviu falar de Leandro, que investiu suas economias para abrir uma lanchonete, faliu e hoje, aos 54 anos, voltou a morar na casa dos pais idosos?
A verdade é que a maioria da humanidade será sempre desconhecida de nós: são pessoas honradas, que trabalharam para pagar as contas e sustentar a família, mas nunca alcançaram fama ou celebridade; apenas viveram vidas normais, nas quais altos e baixos se sucederam. Nas palavras de Guimarães Rosa: “Foram felizes e infelizes, alternadamente”.
A maioria dessas pessoas — a esmagadora maioria — nunca teve poder sobre nada ou ninguém. O rumo e a qualidade de suas vidas sempre estiveram sujeitos a forças maiores e completamente fora do seu controle: sistemas políticos corruptos, leis complexas, caprichos de governantes, revoluções sangrentas e recessões devastadoras.
Temos planos e sonhos, mas somos um pequeno barco de papel em um oceano revolto. A verdade dura é essa: é grande o contraste entre o muito que pretendemos ser e o pouco que, na realidade, a maioria de nós consegue conquistar. Isso não é pessimismo; é constatação.
Diante disso, o ser humano se divide, basicamente, em dois grupos.
O primeiro grupo é formado por pessoas que encaram essa realidade e seguem em frente, motivadas pela determinação de superar obstáculos. Apesar das perdas e derrotas, essas pessoas seguem amando, trabalhando, cuidando de suas famílias e investindo em planos e projetos, grande ou pequenos. Esse grupo lida com suas limitações e frustrações — incluindo saúde frágil, falta de dinheiro e pouca instrução — e vive normalmente, trabalhando, produzindo e encontrando alegria e satisfação onde é possível.
Mas as mesmas dificuldades provocam, em outras pessoas, sentimentos de inferioridade e derrota insuperáveis, que arruínam suas vidas.
Incapazes de aceitar as limitações impostas pela dura realidade, elas se entregam ao rancor, ao ressentimento e à tentação de culpar alguém — a sociedade, a classe opressora, a desigualdade, os alimentos transgênicos, o aquecimento global ou a “mais valia” — por tudo que deu errado em suas vidas
Essas pessoas encontram na ideologia revolucionária de esquerda — variadamente chamada de marxismo, comunismo, socialismo ou progressismo — a expressão perfeita para seu rancor. A frustração existencial e os sonhos nunca realizados alimentam esse ressentimento coletivo, transformando-o em estrutural: uma chama gigante que se propõe a queimar o imperfeito mundo e recomeçá-lo do zero.
A doutrina política da revolta é mera versão intelectualizada — ou, no dizer dos intelectuais, uma versão dialética — da soma da frustação social, emocional, econômica — e, frequentemente, amorosa — de milhões de ressentidos. Esse rancor se fermenta em uma disposição violenta para “fazer a revolução” — não importa muito o que isso signifique.
O fracasso absoluto de todos os regimes socialistas não representa nada diante da oportunidade de redimir o ressentimento, a frustração e os erros de toda uma vida
A ideologia da revolta fornece justificativas e explicações “científicas” para o catálogo de perdas e danos que todos trazemos conosco. Se você não conseguiu comprar uma casa depois de toda uma vida de trabalho, é porque a propriedade privada é um crime. Se você não conseguiu formar uma família estável, é porque a família é uma invenção opressora burguesa que precisa ser destruída. Se as drogas, o álcool ou a promiscuidade te impediram de encontrar a realização emocional ou uma carreira estável, é melhor então que todo mundo também seja promíscuo e dependente químico.
O pensamento do revolucionário rancoroso pode ser resumido da seguinte forma: quero obrigar os outros a sofrerem os males que eu sofri e a cometerem os erros que eu cometi, porque isso reduz minha sensação de derrota e solidão.
Diante disso, parece justo dizer que podemos classificar os ativistas revolucionários em dois grupos. O primeiro é o grupo ideológico. Ele é formado pela pequena porcentagem de militantes que realmente entende e subscreve as propostas socialistas. Eles representam, no máximo — é meu palpite — 5% dos ativistas.
O segundo grupo, que compõe a maioria restante, é formado por pessoas em busca de uma expressão social e política para seu rancor, e de uma explicação dialética e “científica” para fracassos, derrotas e frustrações que eles não conseguiriam aceitar ou superar de outra forma.
O que a ideologia de esquerda lhes diz é que os períodos amargos ou o resultado infrutífero de suas vidas não são culpa deles e nem do acaso. A derrota do esquerdista é sempre culpa da superestrutura capitalista, do mercado selvagem ou de um mecanismo terrível de opressão que precisa ser destruído.
Nessa fantasia ideológica o militante esquerdista encontra mais do algo para ocupar seu tempo ou uma forma de justificar erros e pecados; ele encontra o preenchimento de um vazio existencial.
Em épocas passadas esse vazio era preenchido pela religião, por relações familiares ou até por afiliações a uma tribo ou a um soberano. Hoje, para muitos, isso tudo foi substituído pelas fantasias do progressismo.
A vida é injusta, dolorosa e incerta. Mas, para o esquerdista, quando a revolução vencer, tudo será só felicidade.
A contradição entre a realidade objetiva do mundo — os problemas complexos que precisam ser entendidos e resolvidos — e a resposta dada a esses problemas pelas políticas esquerdistas, que sempre produzem ruína e massacres, são irrelevantes para os ativistas do rancor.
O fracasso absoluto de todos os regimes socialistas não representa nada diante da oportunidade de redimir o ressentimento, a frustração e os erros de toda uma vida. Diante dessa possibilidade — por mais fantasiosa que possa ser —, o impulso para a rendição ao totalitarismo vingativo se torna irresistível.
Mas a fantasia socialista não muda a realidade da vida.
“Todas as sociedades”, disse James Burnham, “inclusive as ditas democráticas, são governadas por uma minoria”. Embora essa minoria, a elite governante, procure legitimar seu poder aos olhos da sociedade, no final, segundo Burnham, “o objetivo primordial de toda elite, ou classe governante, é manter o próprio poder e privilégio”.
O melhor que podemos esperar é que sempre exista, no nosso meio, uma massa crítica de indivíduos informados e independentes, exercendo vigilância permanente contra o arbítrio e o totalitarismo. No mundo atual, a grande ameaça à liberdade vem da ideologia marxista, uma erva violentamente venenosa que germina e cresce no solo fértil do ressentimento.
Que nossa revolta e nossa indignação, diante das injustiças e dos crimes, nunca fertilizem esse solo infame.
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Revista Oeste