sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

"O horóscopo para 2021", por Leonardo Coutinho

 



Em fevereiro, tudo irá mudar para melhor. É o que promete o horóscopo chinês. No dia doze começará o ano do boi. Segundo um site que trata do assunto, e que foi bastante preciso sobre as agruras de 2020, este ano será de recuperação.


O mesmo site diz que em 2021 não ocorrerão eventos explosivos ou catastróficos. Portanto, o ano será também favorável para a recuperação e consolidação econômica. Algo que parece improvável, mas o fato de 2020 ter sido absolutamente horroroso, torna possível que as previsões chinesas voltem a se confirmar. Mas ser melhor, claro, não significa ser mais fácil.


A previsão vem com um alerta: “é um ano em que os problemas são resolvidos com disciplina”. Muita disciplina e esforço extra. Ou seja. Será um ano do boi. O ano dos bois de carga.


Não seria nem necessário o horóscopo chinês para nos alertar que as melhoras não virão de mão beijada. O ano do rato, que está por terminar, foi tão pestilento que suas sequelas nos acompanharão por muito tempo. Chegamos a 2021 com mais de 1,8 milhão de mortes. Um mundo redesenhado pelo medo, cujo efeito colateral mais perigoso é o affair com o totalitarismo.


As ambições do Partido Comunista Chinês foram a ponte que permitiu a peste atravessar a barreira interespécies. Saltando do morcego para nos infernizar para sempre. Mas, como se ainda fosse possível, os chineses espalharam pelo mundo algo tão contagiante quanto o vírus: a rendição diante do medo da morte. Algo extremamente humano. Profundamente humano.


Não se trata de negar o uso de máscaras, distanciamento social e as demais imposições sanitárias que se tornaram inevitáveis para minimizar a disseminação do coronavírus. Idiotices como estas atrapalharam a vida do presidente Donald Trump, por exemplo. O ponto chave é a rendição.


Este é o Ano do Boi, mas nem por isso, devemos ser tão bovinos. Juntamente com o vírus, a China exportou para o mundo uma amostra de como o povo chinês vive sob a mira do Estado.


Não é nada empírico, mas parece que há uma certa admiração para quem tem pesado a mão. E há um certo clima de tolerância às arbitrariedades. Quando o Supremo Tribunal Federal (STF) determina a aplicação de sanções para quem não tomar vacina contra covid-19 e é celebrado como o guardião as sanidades física, mental e democrática do país, há algo para se pensar.


Um ponto bastante curioso para um país que não tem vacina para todo mundo e deveria, seguindo um raciocínio básico priorizar quem mais precisa e quem quer ser vacinado. Aqueles que adiarem a escolha ou se recusarem a tomar a vacina que assumam os seus próprios riscos. Mas há quem diga que não se trata mais de uma escolha individual, pois coloca em risco a vida dos outros. Mas aí vem a questão. A vida de quem já que em tese quem aderiu à vacina já estaria imunizado.


Mas enfim. A questão não é tão simples. O Brasil venceu o sarampo e pólio sem medidas impositivas. Campanhas educativas fizeram a população aderir, praticamente de forma massiva, aos programas de vacinação.


Em 2018, uma epidemia de sarampo eclodiu na Venezuela de Nicolás Maduro. A onda de refugiados que, naquele ano, fugia do regime, levou consigo a doença para os países vizinhos, inclusive o Brasil. Em Pacaraima, cidade brasileira que é a porta de entrada dos venezuelanos, a Organização Panamericana de Saúde mantinha alguns funcionários para orientar o Brasil no manejo da crise, como se isso realmente fosse algo necessário. Empacotada por um coletinho azul com o símbolo da organização internacional, uma consultora me disse que obrigar a vacinar era uma violação aos direitos humanos. A resposta à minha pergunta veio acompanhada de uma explicação. “Ninguém pode ser obrigado a se vacinar. A melhor política é monitorar as pessoas enquanto estão aqui na fronteira para ver se há evolução dos sintomas”. Fevereiro de 2018. Parece algo tão distante. Outros tempos.


Em 2013, o venezuelano Moises Naim publicou o fundamental O fim do poder. Entre vários elementos que nos ajudam a entender como chegamos até aqui, seu livro nos fala de como o poder, tal como conhecíamos, se tornou volátil. As instituições se tornaram vulneráveis e com elas política e políticos e a própria democracia. Não necessariamente o poder havia desaparecido, mas mudado de forma e de mãos.


A China exibe números impressionantes para justificar como domou o monstro criado por ela mesma. Nas redes sociais e na imprensa não faltam pessoas encantadas com o sucesso de Xi Jinping. Entre a ficção e a realidade, os números chines só podem ser construídos por meio da força. Algo que só as ditaduras podem oferecer.


A pandemia de coronavírus mostrou que onde o governo não usou o peso de sua mão sobre as pessoas, os cidadãos reclamaram por não ter sentido o peso deste poder. Parece esquisito. Mas paulistanos se sentiram protegidos ao saber que seus dados de localização de celular poderiam servir para monitorá-los. O Google já faz, por que o governo não pode fazer para o bem geral?


No Catar, a população foi obrigada a fazer o download de um aplicativo estatal no celular. O simples fato de sair de casa para colocar lixo na rua era motivo para o sistema de rastreamento enviar um puxão de orelha para o usuário pedindo-lhe explicações das razões de ter ido até a calçada.


É evidente que a pandemia exige um esforço extraordinário das pessoas. Máscara, antisséptico, distanciamento social e a menor circulação em ambientes públicos possível. Volto a citar o erro fatal de Trump, que se tivesse tido a serenidade para recomendar o óbvio, não teria fortalecido o discurso injusto de que ele conduziu mal a resposta do Estados Unidos à pandemia.


Este será o ano da vacinação. O amplo cardápio de imunizantes traz consigo lições importantes sobre o avanço da ciência, como o mundo ainda funciona e como ele poderá vir a funcionar. Quando comparadas com as concorrentes ocidentais, as opções chinesas revelam perfeitamente como o regime que avança sobre o mundo opera. Não há transparência. Há históricos de corrupção e uma descarada cooptação das estruturas políticas, acadêmicas e de imprensa.


Não se trata de ser contra a nacionalidade de um imunizante. Mas é inadmissível a tolerância à falta de dados que comprovem que ele possa funcionar. Um comportamento bovino que deveria acender uma luz de alerta. Uma luz bem vermelha. Feliz Ano Novo.

Leonardo Coutinho - Jornalista, autor do livro “Hugo Chávez, o espectro”, pesquisador e comentarista sobre segurança e relações internacionais. Escreve semanalmente, desde Washington, D.C.


Gazeta do Povo