terça-feira, 19 de janeiro de 2021

"Big Techs, liberdade e dinheiro: enfim, a hipocrisia", por Madeleine Lacsko

As mesmas empresas que 

radicalizaram discursos e 

ganharam espalhando 

informações falsas querem 

nos convencer que estão

preocupadas


 Foto: Pixabay



As redes sociais estão bloqueando a rodo todo mundo que tirava sarro da minha cara quando eu dizia que Big Techs não garantem liberdade de expressão. Primeiramente pedindo desculpas a Jesus, não sei se fico mais feliz pelo prato frio da vingança ou porque finalmente as pessoas estão abrindo os olhos para a manipulação macabra que temos vivido. Eu também já acreditei que as redes sociais dariam liberdade de expressão. Assim como você, raciocinei que finalmente o cidadão comum finalmente teria voz.


Faz tempo que profissionais da comunicação descobriram que o negócio das Big Techs é dinheiro, não liberdade de expressão. As plataformas têm maneiras de coletar informações suas e de mexer com o seu psicológico para te convencer a fazer coisas. Muita gente ganhou dinheiro com isso. Eu fui a imbecil que resolvi avisar o público. Como dizia Mark Twain, é muito mais fácil enganar alguém do que convencer que foi enganado.


A modinha da vez entre as Big Techs para posar de boazinhas é banir todo mundo que insiste na promoção do orgulho curandeiro nas plataformas. No topo dos negócios mais lucrativos das redes sociais estão radicalização, dicas financeiras e medicina alternativa. Com a pandemia, muita gente fez um sarapatel de coruja dos temas e isso correu solto até a liderança dos Estados Unidos mudar de mãos. Enquanto Donald Trump estava no poder e com perspectivas de se reeleger, a política dessas empresas para as Américas seguia os interesses dele. Até propaganda de desinfetante no sol para curar COVID era liberada. Agora, nem questionar mais está podendo.


Claro que sempre haverá os acreditadores profissionais dizendo que essas empresas estão muito preocupadas com os curandeiros de plantão que receitam simpatia como se fosse remédio aprovado. Todo mundo já recorreu a alguma coisa não científica para tratar questões de saúde em algum momento da vida, inclusive quem nega. Eu negaria se tanta gente não soubesse das diversas simpatias que já fiz contra as cãimbras cruéis depois que eu caí de paraglyder. Foram somadas ao grupo de oração, reiki, meditação, cromoterapia e garrafada.


Infelizmente não tenho a cara-de-pau de sair por aí dizendo que isso funciona e que há dúvidas entre os cientistas. Talvez não tenha sido a combinação da cirurgia com os pinos, gesso e fisioterapia que curou, foi a garrafada. Há dúvidas, vamos então recomendar a todo acidentado que tome a garrafada. Com o tanto de gente sem noção na nossa pátria de chuteiras, avaliem o potencial comercial dessa ideia. Eu sinceramente não sei e jamais saberei o que se passa na cabeça dos defensores de remédios inócuos para tratar coronavírus.


Me perguntam se eu não tomaria os remédios inócuos contra COVID caso estivesse entre a vida e a morte. Amigos, eu já fiz simpatia e nem estava entre a vida e a morte. Na hora do desespero, a gente faz qualquer negócio. Isso é diferente de dar falsa esperança às pessoas. Diversos remédios foram testados contra o coronavírus no início da pandemia e, infelizmente, não funcionaram. Como há gente que ainda insiste nisso, as redes sociais decidiram bloquear ou suspender essas pessoas. E se eu te contar que eles recebiam anúncio pago desses remédios?


Existem medicamentos dados nos hospitais para combater as consequências do coronavírus, como se fazia antes do coquetel do HIV. Não tendo como tratar a doença, você vai fazendo o que dá, aliviando uma pneumonia, evitando coagulação, descendo pressão arterial. São remédios usados para o propósito que foram criados. Mas os tais remédios alardeados por aí seriam usados para propósitos diferentes dos originais: cloroquina, ivermectina, nitazoxanida, azitromicina e ozonioterapia. Alguns chegaram mesmo a ser testados contra a doença e não funcionaram, outros nem isso. Mesmo assim, viraram anúncios publicitários de remédios contra a COVID no Facebook e no Instagram.


Durante o ano de 2020, 273 anúncios pagos que promoviam falsamente esse conjunto de remédios como eficientes contra o coronavírus foram exibidos pelo menos 3,9 milhões de vezes no Instagram e no Facebook. O levantamento é de dados públicos da própria plataforma e foi compilado pela agência Aos Fatos. Um deles, aliás, ainda está sendo veiculado mediante pagamento. O Facebook não divulga os valores exatos, mas para atingir todas essas visualizações não se gasta mais de R$ 40 mil. O mínimo seria R$ 10 mil.


Dos 273 anúncios pagos para promover que remédios como cloroquina têm alguma eficácia contra o coronavírus, apenas 2 foram retirados do ar por violar as políticas da plataforma. É um glorioso total de 0,8%. Vale lembrar que os anúncios não são automáticos, você posta e eles só rodam depois que o Facebook ou o Instagram aprovam. Como explicar então que derrubem contas ou postagens de pessoas físicas que fazem a mesma afirmação? Mentir não é liberdade de expressão, da mesma forma que hipocrisia não é moralidade.


Impedir que ídolos radicais participem do debate público diminui, no curto prazo, a capacidade deles de arregimentar seguidores e a eficiência dos asseclas. No longo prazo, o simples banimento gera curiosidade no início e pode promover grupos radicais à condição de mártires contra o sistema. Esse é o histórico de casos passados, relacionados a terrorismo internacional islâmico. O banimento funciona mas não sozinho nem é responsabilidade de particulares, trata-se de uma pequena parte da ação antiterrorismo feita pelas autoridades responsáveis.


Desde maio de 2019, o FBI considera alguns tipos específicos de teorias conspiratórias QAnon como terrorismo doméstico. Não é o conteúdo delas que tem potencial explosivo. Elas são uma espécie de marcador, um elemento de discurso presente nos grupos responsáveis pela maiora dos atentados terroristas nos Estados Unidos desde 2017. Após a invasão do Capitólio por pessoas que fazem parte desses grupos radicais, todo mundo resolveu banir Donald Trump das redes. O Twitter desativou 70 mil contas de teóricos QAnon. Faz quase 2 anos que se sabia do potencial explosivo desses grupos, por que só agora?


Tirar Trump das redes sociais tem um impacto gigantesco na diminuição de circulação de teorias conspiratórias. O Washington Post publicou um estudo mostrando queda de 73% no volume de conversas sobre uma delas em apenas um dia sem Trump. O tema caiu de 2,5 milhões de postagens para 688 mil. A análise vale na mão inversa. Permitir até hoje a livre circulação dessas teorias teve um impacto gigantesco e as Big Techs são responsáveis. Passaram os últimos anos negando isso publicamente.


Inimigo do seu inimigo não é seu amigo. Numa sociedade hiperconectada, isso é cada vez mais importante. Quando o alvo de ataques em massa, alguns impulsionados e com robôs, eram jornalistas, não faltou político, capacho e malandro para chamar isso de mimimi. Alegavam que nós, jornalistas - ou "jornas", como diziam na época - estávamos desesperados porque finalmente estávamos tendo de ouvir a verdadeira voz do povo.


Em meses, todo o time do Voz do Povo Futebol Clube achou feio ser chamado de blogueiro e também meio pobre isso de povo e passou a se autointitular jornalista. Mas um jornalista diferente, vejam bem. No meio do caminho tinha a eleição dos Estados Unidos e daí o jogo virou. Mudando quem manda, coincidentemente as Big Techs voltaram a agir como agiam na era Obama. Nossa, que coincidência, não é mesmo? E então, resolveram apertar a fervura para o lado dos neojornalistas, advindos do time Voz do Povo Futebol Clube. Uma traição sem tamanho, além de ingratidão.


Pelo andar da carruagem, já sabemos que censura nas redes sociais é quando suspendem alguém de quem a gente gosta. Quando a gente não gosta da pessoa chama-se justiça. Também sabemos que ameaça de morte nas redes sociais é quando se dirigem a alguém com quem simpatizamos. Quando a gente tem birra com a pessoa, está claro que ela não aguenta uma crítica. As Big Techs ganham no conflito e na radicalização, vão mudando de atitude conforme o vento e nada explicam.


Aprendemos muito nos últimos tempos. Já sabemos do potencial de radicalização de pessoas normais via redes sociais, não se trata de inteligência ou convencimento, é lavagem cerebral. Também sabemos o impacto de uma única conta como a de Donald Trump na promoção de interações com grupos dispostos a radicalizar pessoas e a cometer atos radicais. Também sabemos que o interesse da sociedade está sendo colocado a reboque dos interesses particulares das Big Techs.


Tal como político brasileiro, uma hora as redes sociais não são responsáveis por conteúdo e na outra são. Uma hora a atuação delas não tem impacto sobre como os usuários interagem, na outra tem. Se permite impulsionar anúncio com determinado conteúdo, mas quem postar a mesma coisa na página pessoal é bloqueado. Participar dessa dinâmica já foi uma escolha, não é mais. O exercício pleno da cidadania depende do acesso às redes sociais nos limites da lei e do interesse humano, não da conveniência das Big Techs. Não sei quem vai dar os limites, mas já está claro que não podem ser as empresas.



Gazeta do Povo