sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

"A vacina e o vexame", por Paula Leal

A largada da vacinação no Brasil em meio a disputas de poder





OBrasil deve ser o único país onde a covid-19 ganhou status de mercadoria política. Por aqui, governantes usam a pandemia para tirar proveito eleitoral da desgraça da população. A indústria da calamidade pública abriu as portas para episódios de desvios de verba, corrupção e desperdício de dinheiro do pagador de impostos. Sob pretexto de conter a expansão do coronavírus, contratos firmados sem licitação rolaram aos montes para enriquecer oportunistas de plantão. A construção dos hospitais de campanha a toque de caixa, encampada por políticos, se mostrou pouco eficaz. Foram gastos milhões em tendas improvisadas que ficaram vazias boa parte do tempo e acabaram desmontadas poucos meses depois. Agora, gestores públicos reclamam da falta de leitos para internar pacientes.

A mais recente disputa política envolve o início da vacinação no Brasil. Mais de 55 países começaram a vacinar. Alguns já completaram mais de um mês de campanha de vacinação, como nos casos de Reino Unido, França e Estados Unidos, e mais de 40 milhões de doses foram aplicadas em todo o mundo até o momento. Estamos atrasados? Sim, mas começamos praticamente ao mesmo tempo que a Índia, que iniciou no último sábado, 16, e a Indonésia, que deu o start no último dia 13. Ou seja, não estamos no fim da fila e avançamos junto com outros países populosos, com dimensão territorial extensa e complexidade econômica e social similar.

Do ponto de vista sanitário, o que vai determinar o sucesso ou o fracasso de um plano de vacinação é o porcentual de imunizados em relação à população geral. Começar um pouco antes ou um pouco depois, importa menos. E, nesse sentido, o Brasil tem uma vantagem: contamos com a experiência do Programa Nacional de Imunização, uma referência internacional de política pública de saúde. Desde a década de 1970, o país acumula conquistas na área, como a erradicação da varíola e da poliomielite. São cerca de 38 mil salas de vacinação espalhadas pelo território, e mais de 27 vacinas distribuídas gratuitamente para a população, inclusive todas as recomendadas pela Organização Mundial da Saúde. O histórico é promissor, só precisa funcionar direito na pandemia.

O show da vacina

O país acompanhou um verdadeiro show político após a Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) dar o sinal verde para o início da vacinação no último domingo, 17, com a autorização do uso emergencial de duas vacinas — a CoronaVac, produzida pelo laboratório chinês Sinovac junto com o Instituto Butantan, e o imunizante da farmacêutica britânica AstraZeneca, em parceria com a Universidade de Oxford e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O governador de São Paulo, João Doria, passou na frente de outros Estados e transformou a cerimônia em espetáculo eleitoral. Para não perder tempo, Doria e sua equipe assistiram à transmissão da reunião da Anvisa no Hospital das Clínicas, na capital paulista. Minutos após o anúncio da liberação de uso dos dois imunizantes, a primeira brasileira foi vacinada, diante das câmeras — e, claro, ao lado de Doria. Assim, o governador garantiu a foto oficial da primeira dose aplicada no país e deve exibir o troféu como principal arma política para concorrer à Presidência da República em 2022. Mas as estratégias de marketing não pararam por aí: o governo instalou um “vacinômetro” para contabilizar o número de doses aplicadas. Além disso, o governador e seus auxiliares providenciaram um uniforme, uma camiseta com a bandeira nacional e a inscrição “Vacina do Butantan, a vacina do Brasil”.

O evento marqueteiro foi um esforço para afastar a imagem arranhada da CoronaVac, após as falhas da equipe de comunicação do governo e do Instituto Butantan na divulgação de dados da vacina. Primeiro, a sucessão de adiamentos para anunciar os resultados dos estudos clínicos. Depois, os dados científicos foram divulgados a prestação, até que se revelou o segredo guardado desde dezembro — a eficácia da CoronaVac é de 50,38%, no limite exigido para aprovação pela Organização Mundial da Saúde e pela Anvisa. Além disso, o contrato entre o governo paulista e o laboratório chinês Sinovac envolve cláusulas sigilosas que não podem ser compartilhadas com a comunidade médica — são mantidas em segredo pelos fabricantes, algo um tanto quanto peculiar, no mínimo. Os únicos países que toparam vacinar com a CoronaVac além do Brasil foram Turquia, Indonésia e China, pelo menos por enquanto. Ou seja, o produto não é aplicado em nenhum país desenvolvido e com boa reputação na gestão de saúde pública. Não é para menos que se instalou uma verdadeira crise de confiança em torno do produto chinês.

Mas o fato é que, hoje, a CoronaVac é a única opção dos brasileiros para a vacinação. A grande aposta do governo federal, a vacina da Oxford, ainda não chegou ao Brasil. Não há até o momento uma dose sequer do imunizante disponível para aplicação em solo nacional. Ou seja, no que dependesse das negociações do Ministério da Saúde (MS), o país seguiria ostentando o tão aguardado aval da Anvisa, mas de nada adiantaria porque não haveria vacinas. O governo poderia, por exemplo, ter avançado no acordo com a Pfizer/BioNTech, responsável pelo imunizante mais aplicado no mundo até agora. Entretanto, o contrato empacou em algumas cláusulas, especialmente com relação ao termo de isenção de responsabilidade, embora essa seja uma exigência internacional aceita por outros países que fizeram negócio com o laboratório norte-americano.

O imbróglio envolvendo a compra de 2 milhões de doses da Oxford/AstraZeneca fabricadas na Índia ainda não acabou. Enquanto a equipe da Saúde se preocupava em adesivar o avião oficial que buscaria o produto no dia 15 de janeiro, o governo indiano informou que era “muito cedo” para confirmar a data de envio das vacinas. A declaração frustrou os planos do MS, que se preparava para receber o imunizante até domingo, 17, a tempo de ser usado no início da vacinação em todo o país. Não deu certo. O jeito foi bater à porta do Instituto Butantan e solicitar a entrega “imediata” de 6 milhões de doses da CoronaVac.

O mal-estar criado com a demora no envio dos imunizantes pelo governo indiano deve acabar nesta sexta-feira, 22. A Índia finalmente autorizou a exportação das doses da vacina para o Brasil. A previsão é que o carregamento desembarque no aeroporto de Guarulhos no próximo sábado, 23. A Fiocruz tem um acordo com a britânica AstraZeneca para produzir a vacina e promete fornecer 700 mil doses diárias do produto. Entretanto, a entrega de IFA, sigla para “ingrediente farmacêutico ativo”, atrasou a produção tanto do Butantan quanto da Fiocruz. Um dos maiores fabricantes de IFA do mundo é a China, de onde virão os insumos para a fabricação das vacinas no Brasil. Mas as importações estão travadas pelo governo chinês. Não se sabe se por ato político ou se por motivos “técnicos”, como alegou o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming.

O fiasco brasileiro na condução da pandemia

A guerra das vacinas só evidencia a inépcia e a falta de preocupação do gestor público com a saúde da população. Mas o Brasil coleciona uma série de vexames na condução da pandemia. O Supremo Tribunal Federal (STF) esvaziou poderes do governo do presidente Jair Bolsonaro e transferiu para Estados e municípios a responsabilidade para tomar medidas no combate ao coronavírus. Para o governo federal sobrou a conta para socorrer os gastos dos entes da Federação.

Com a decisão do STF, o que se viu foi a ascensão de governos autoritários que, em nome da “ciência”, impuseram confinamento horizontal e ameaçaram prender quem não cumprisse as regras. Até mesmo caminhar pela Praia de Copacabana ou sentar-se no banco de uma praça ao ar livre foi considerado crime contra a saúde pública, com direito a uso de algemas e detenção. Em vez de focarem o combate à doença, alguns prefeitos e governadores optaram por implementar políticas de gabinete para restringir a circulação de pessoas e determinar o fechamento de estabelecimentos. Fora os episódios do chamado Covidão, que escancararam a roubalheira com o dinheiro dos pagadores de impostos para a compra de respiradores e equipamentos médicos.

Até hoje, a discussão sobre tratamento precoce é um tabu com lado político bem definido. As medicações ganharam status “de direita” e não importa que existam evidências científicas favoráveis ao uso desses remédios — quem decide se você deve ou não ficar em casa acha que não funcionam e ponto-final. Outro desastre é a precariedade dos números da pandemia. A coleta de dados imprecisos e com atraso impacta diretamente nas políticas sanitárias. No registro de mortes no país, falta rigor para determinar quantas pessoas morreram de fato de covid-19 e quantas estavam com covid-19 ao morrer, o que é bem diferente. Com a queda considerável no número de óbitos de outras doenças como pneumonia, infarto, septicemia, é bem possível que esses registros tenham ido parar na conta do coronavírus. E é mais certo ainda que nunca saberemos o que de fato aconteceu.

Em meio a tantos tropeços, em clima de guerra e disputas de poder, foi dada a largada para a campanha de vacinação contra a covid-19 no Brasil. A conquista científica deveria ser celebrada sem paixões políticas, com a sobriedade que o momento exige. Mas no país que marca evento de vacinação no Cristo Redentor, cartão-postal do Rio Janeiro, os dividendos eleitorais falam mais alto. É bom lembrar que as vacinas estão na fase 4 dos estudos, quando são testadas em larga escala e eventos adversos ainda desconhecidos podem pôr tudo a perder. Não se sabe ainda quanto tempo dura a imunidade da pessoa vacinada. É possível que falte imunizante no mercado em breve. As campanhas precisarão ser interrompidas até a reposição do estoque, o que pode prejudicar a efetividade das vacinas. A ciência não tem a resposta para todas as dúvidas e muitas só serão respondidas com o tempo. Mas o mundo econômico e a opinião pública dão sinais de que a questão da imunização deve ser prioridade. Para quem está de olho em 2022, não há como saber ainda o peso que a vacinação terá nas próximas eleições. Qualquer palpite agora é mero exercício de futurologia. De qualquer modo, o dever do gestor público para com o cidadão pagador de impostos precisa ser cumprido. E já.

Revista Oeste