domingo, 17 de janeiro de 2021

"A democracia do cancelamento", por Thiago Rafael Vieira e Jean Marques Regina

 

O presidente americano Donald Trump discursa em frente ao muro na fronteira entre os EUA e o México, no Alamo, Texas, 12 de janeiro| Foto: Mandel Ngan/AFP


“A coisa tá tão feia que até o Trump foi cancelado!” Não sei se você ouviu esta frase por aí, mas nós, do “Crônicas de um Estado laico”, a ouvimos muito desde então. Mas será que está tão feia mesmo? Afinal de contas, a voz do povo não é a voz de Deus? A verdade é que basta lembrarmos do “solte Barrabás” em coro, quando perguntado por Pilatos, e que condenou Jesus, para lembrarmos que não é bem assim.


Entretanto, este episódio com Trump e aquele em que jornalistas brasileiros conhecidos aconselham-no, assim como ao presidente Bolsonaro, a se suicidarem demonstra-nos como nossa democracia moderna pode ser manipulada. Aristóteles ensinava a democracia como uma degradação do governo de muitos (politeia), em que os demagogos adulavam o povo para obter o poder e assim se refestelar nele. Mas o próprio filósofo reconhece que a democracia é o melhor entre os piores vícios governamentais (tirania e oligarquia).


Deixando para trás a Antiguidade Clássica, percebemos nos modernos, tais como Alexis de Tocqueville, que a democracia é o melhor dos regimes possíveis, desde que consiga harmonizar o máximo de liberdades com condições gerais de igualdade para todos. Entretanto, Tocqueville não se furta de mencionar os possíveis vícios da democracia, especialmente o vício da tirania da maioria, que ocorre quando a maioria impede que a minoria expresse sua opinião e participe, com sua voz, do processo político. Evidente que o governo democrático se expressa pela vontade da maioria; entretanto, a minoria precisa participar do debate político, inclusive com a possibilidade de, a partir do livre convencimento dos demais, tornar-se a maioria, como ensina Norberto Bobbio.


Não podemos e não devemos ser a favor da incitação à violência. Mas também não podemos simplesmente andar com uma mordaça no bolso, sempre prontos a calar aquele que pensa diferente de nós


A possibilidade de expressar nossas opiniões, em qualquer espaço, é chamada de pluralismo político, constante, inclusive, como um dos fundamentos da República brasileira, previsto no artigo 1.º, inciso V da Constituição brasileira. Negar o direito de opinião e expressão é um atentado contra a democracia, pois, como vimos, a democracia deita suas raízes na variedade de pensamentos e opiniões.


Dizia Mill em Sobre liberdade que “o mal particular em silenciar a expressão de uma opinião é que constitui um roubo à humanidade, à posterioridade, bem como à geração atual; àqueles que discordam da opinião, mais ainda do que àqueles que a sustentam. Se a opinião for correta, ficarão privados da oportunidade de trocar erro por verdade; se estiver errada, perdem uma impressão mais clara e viva da verdade”.


Com esta sentença do grande liberal, apontamos a munição de nossa “Bic” para episódios que destacamos no início do texto: o cancelamento da conta no Twitter do presidente da maior democracia do mundo, sob a alegação de incitação à violência; e os “conselhos” dos jornalistas Ruy Castro e Ricardo Noblat para que os mais altos mandatários do Brasil e da EUA cometam suicídio, como uma saída honrosa do cenário político (citando inclusive o gesto do presidente Vargas, que tragicamente tirou sua vida em 1954).


Não podemos e não devemos ser a favor da incitação à violência – especialmente do atentar contra a própria vida (em dias de pandemia e sensibilidades mil, ainda mais). Mas também não podemos simplesmente andar com uma mordaça no bolso, sempre prontos a calar aquele que pensa diferente de nós. No passado o grande paradoxo da democracia era conciliar liberdade e igualdade – e continua sendo hoje; entretanto, no século 21, surge outro paradoxo: harmonizar liberdade de expressão e discurso de ódio. Tudo fruto da perda da racionalidade para o sentimento (e, muitas vezes, para o ressentimento).


Apelamos aos clássicos para demonstrar que não existe democracia sem pluralidade de ideias, com a possibilidade de que todos tenham oportunidade de expor suas ideias, nas mesmas condições dos outros, mesmo que o “todos” se resuma a uma única pessoa. Mas, e se estas ideias forem agressivas? É possível a censura?


A regra é a livre manifestação de nossas opiniões; as exceções são as restrições previstas em lei


A Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê, no artigo 19, que “Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”. Quase duas décadas depois a DUDH foi convertida no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos na XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 1966, aprovado e ratificado no Brasil em 1991. No PIDCP temos a previsão de limites à liberdade de expressão nos artigos 19 e 20:


Art. 19 (...)  3. O exercício do direito previsto no parágrafo 2 do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Consequentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para:

a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;

b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas.

Art. 20: Será proibida por lei qualquer propaganda em favor da guerra. 2. Será proibida por lei qualquer apologia do ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou a violência.


A tentativa do PIDCP foi exatamente de harmonizar o livre mercado de ideias e a proteção da dignidade da pessoa humana que, ao fim e ao cabo, é o motivo de existência de todas as liberdades. “Todas as liberdades emanam da Dignidade da Pessoa Humana, inclusive a de expressão. Em outras palavras, todas as liberdades são servas da dignidade e trabalham para seu crescimento”, afirmamos em nosso livro Direito religioso; e continuamos: “A dignidade da pessoa humana é base de todos os direitos, funda-se no próprio direito natural”.


A democracia, sem Estado de Direito, transforma-se no vício alertado por Aristóteles e Tocqueville


Ao lermos este importante tratado de direitos humanos, percebemos facilmente que os limites da liberdade de expressão estão muito bem definidos e devem estar expressamente previstos em lei. Ou seja, a regra é a livre manifestação de nossas opiniões; as exceções são as restrições previstas em lei. Até que ponto houve realmente uma incitação objetiva à violência por parte de Trump? A incitação foi objetiva como as dos jornalistas?


Os jornalistas objetivamente desejaram a morte de uma pessoa e a nominaram: Jair Messias Bolsonaro. Aqui, percebe-se claramente a passagem do limite. Está previsto em lei que instigação ao suicídio é crime; logo, não existe liberdade de expressão para tal ato. A democracia, sem Estado de Direito, transforma-se no vício alertado por Aristóteles e Tocqueville.


O cultivo das liberdades é fundamental para o triunfo civilizatório. Lord Acton, parlamentar inglês do fim do século 19, cunhou uma frase fantástica: “a liberdade é o fruto delicado de uma civilização madura”. O que estamos vendo, dia após dia, é o desmonte cultural – e, consequentemente, político – de nossa civilização. Os freios e contrapesos são necessários, mas devem estar à vista de todos e nunca escondidos nos bolsos. O que se esconde nos bolsos são mordaças.


Thiago Rafael Vieira

Pós-graduado em Direito do Estado (UFGRS), Liberdade Religiosa (Mackenzie com estudos em Oxford e Coimbra) e Teologia (Ulbra), colunista de diversos blogs protestantes e articulistas em diversas revistas acadêmicas. Thiago também é advogado de milhares de igrejas no Brasil e Co-autor, com Jean M. Regina, da obra Direito Religioso: questões práticas e teóricas (1ª, 2ª e 3ª edição). Em 2019, foi um dos delegados do Brasil na Universidade de Brigham Young (Utah/EUA) no 26º Simpósio Anual de Direito Internacional e Religião, evento com mais de 60 países representados. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião - IBDR.



Jean Marques Regina

Pós-graduado em Liberdade Religiosa (Mackenzie com estudos em Oxford e Coimbra) e Teologia (Ulbra), colunista de diversos blogs protestantes. Jean também é advogado de milhares de igrejas no Brasil e Co-autor, com Thiago Rafael Vieira, da obra Direito Religioso: questões práticas e teóricas (1ª, 2ª e 3ª edição). Advogado Aliado da Alliance Defending Freedom (EUA), maior entidade de juristas cristãos do mundo. Fellow Alumnus da Acton Institute (EUA). Co-autor com Thiago Rafael Vieira da obra Direito Religioso: questões práticas e teóricas (1ª, 2ª e 3ª edição). É 2º Vice-Presidente de Relações Internacionais do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR).


Gazeta do Povo