sexta-feira, 4 de setembro de 2020

"Alerta: pesquisas à vista!", por Selma Santa Cruz

Por que as sondagens eleitorais erram tanto, como isso distorce o processo democrático e o que se pode fazer


Prepare-se. Com a definição das candidaturas para as eleições municipais de novembro, vem aí mais uma enxurrada de pesquisas. Neste ano, elas irão se sobrepor às de intenção de voto para a Presidência na ainda longínqua eleição de 2022, já que a grande mídia nos informa quase diariamente sobre as supostas chances de um número crescente de potenciais novos candidatos nesta que pode ser considerada a mais longa campanha presidencial da história do Brasil. 

Haja vista ter sido deflagrada pelos setores insatisfeitos com a escolha do eleitorado praticamente no dia seguinte ao da posse de Jair Bolsonaro. Há que contar, ainda, com a batelada de pesquisas que tentam antecipar o resultado da disputada eleição presidencial norte-americana, cujos desdobramentos geopolíticos e econômicos afetarão vidas no mundo todo.

O preocupante é que, como de hábito, as pesquisas alimentarão manchetes bombásticas, como se fossem predições infalíveis de um oráculo onisciente, a despeito de seu longo, recorrente e conhecido histórico de erros. Basta lembrar, a propósito, que, caso seus prognósticos fossem acertados, Hillary Clinton, a atual ocupante da Casa Branca segundo as projeções feitas durante a campanha de 2016, estaria agora provavelmente disputando a reeleição no lugar de Donald Trump. 

O Reino Unido continuaria integrado à União Europeia, como indicaram erroneamente as pesquisas sobre o plebiscito do Brexit no mesmo ano. E o presidente do Brasil não seria Jair Bolsonaro, visto que, segundo todas as projeções da época, ele não tinha chance alguma contra nenhum de seus principais concorrentes no segundo turno das eleições de 2018.

Em outro desses cenários hipotéticos desenhados pelas empresas de pesquisas, Dilma Rousseff, beneficiada pela maracutaia do então presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, que preservou seus direitos políticos apesar do impeachment, teria garantido com folga uma vaga no Senado em 2018. Quando na verdade ela foi afastada da política pela segunda vez pelo eleitorado mineiro, que anulou, na prática, o artifício inconstitucional.


Um tema mantido fora do radar da opinião pública para não prejudicar os interesses em jogo


Também não se leva em conta, na divulgação de resultados de pesquisas como se se tratasse de ciência exata, seu potencial de fortalecer ou enfraquecer candidaturas e, sobretudo, influenciar as escolhas do eleitorado. Ou seja, de funcionarem como profecias que se autorrealizam e acabam por distorcer o processo democrático.

Não se está aqui defendendo a abolição das sondagens, que cumprem certamente um papel quando retratam tendências de voto de forma imparcial, com metodologias confiáveis de coleta e análise de informações. Mas não se pode perder de vista que se trata, na essência, de um negócio — por sinal, em franca expansão, considerando-se a multiplicação de empresas do segmento, principalmente após o advento das sondagens on-line —, embora a maioria dessas organizações comerciais prefira apresentar-se como institutos, para conferir-se uma aura de confiabilidade.

Como qualquer indústria que atua na esfera de interesse público, portanto, esta demandaria um maior grau de regulamentação, transparência e fiscalização, como têm sugerido diversos estudos recentes. Mas esse é um daqueles assuntos que, no Brasil, são mantidos fora do radar da opinião pública para não prejudicar os interesses em jogo. Após o enorme fiasco das pesquisas no primeiro turno das eleições municipais de 2012 — um dos maiores registrados no país, já que houve erro de previsões em 21 das 26 capitais envolvidas —,  um grupo de deputados federais tentou instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito a fim de investigar eventual manipulação dos resultados. 

“Estamos corrompendo a democracia”, queixou-se à época o senador Espiridião Amin. 

“Pesquisa deixou de ser uma fotografia supostamente honesta de um momento, para ser um agente político, um cabo eleitoral, talvez o mais forte de todos, para desmontar uma candidatura e dar vitamina a outra”, acusou. “Não pode continuar como está.”

Mas continuou. 

Exatamente como estava. 

Pois, apesar de cumprir com todos os requisitos exigidos, a iniciativa da CPI acabou abortada pelo então presidente da Câmara e hoje presidiário, em regime domiciliar, Eduardo Cunha. Um mandado de segurança chegou a ser impetrado, sem sucesso. E em maio passado o Supremo Tribunal Federal — sempre ele… — finalmente enterrou o assunto, decidindo contra o pleito dos deputados. 

O STF, por sinal, já arbitrara o tema, em 2006, contra uma proposta de proibição de divulgação de pesquisas nas semanas anteriores às eleições para reduzir sua interferência nos resultados — como fazem, por exemplo, países como a França e o Canadá. A alegação foi que a medida atentaria contra o direito constitucional à informação, esse mesmo direito que, ultimamente, vem sendo afrontado sem pudores pelo tribunal em suas decisões sobre as chamadas fake news.


A evolução das metodologias e técnicas estatísticas poderia garantir maior grau de confiabilidade. Não foi o que ocorreu


O problema é particularmente crítico no Brasil, considerando-se que parte das pesquisas é bancada com dinheiro do pagador de impostos, por meio dos famigerados Fundo Partidário e Fundo Eleitoral, que este ano encherão as burras dos partidos com nada menos do que R$ 3 bilhões. E porque elas têm um peso importante nas despesas dos partidos, ao lado de gastos com vinhos de boa safra, fretamento de jatinhos e salários de parentes de políticos, como atestam as prestações de contas registradas anualmente no Tribunal Superior Eleitoral, o TSE. 

Com o agravante de que, em muitos casos, as empresas contratadas para a execução dos serviços pertencem a dirigentes ou a políticos filiados às siglas.

Embora desperte pouco interesse no Brasil, contudo, a preocupação com os riscos à democracia causados por pesquisas inexatas tem aumentado lá fora, à medida que se multiplicam os erros e despenca sua credibilidade. A sucessão de malogros, por sinal, vem de longe. Um de seus marcos é a clássica foto de 1948 na qual o então presidente norte-americano Harry Truman comemora a reeleição segurando um jornal cuja manchete anuncia, com base em pesquisas, sua derrota para o concorrente Thomas Dewey.

De lá para cá, era de esperar que a evolução das metodologias e técnicas estatísticas teria sido suficiente para garantir maior grau de confiabilidade. Mas não foi o caso. Tanto que o desastre das pesquisas na eleição de Trump e no plebiscito sobre o Brexit levou, desde 2016, à instalação de duas comissões de alto nível, uma nos Estados Unidos e a outra no Reino Unido, para tentar detectar causas e propor recomendações. 

A primeira delas, instituída pela American Association for Public Opinion Research, admitiu as deficiências e o crescente descrédito das sondagens junto à opinião pública. Como seria de esperar de um comitê formado pela própria indústria, no entanto, foi condescendente ao minimizá-las. Concentrou as incorreções apenas nas pesquisas realizadas em nível estadual, cujos resultados acabaram sendo determinantes para a vitória de Trump no Colégio Eleitoral.

Já o comitê criado em 2017 no Reino Unido pela Câmara dos Lordes, em reação ao vexame no referendo do Brexit, que repetiu erros crassos já contabilizados nas eleições gerais de 2010 e 2015 no país, foi mais incisivo nas críticas.

“A indústria das pesquisas tem que pôr sua casa em ordem”, admoestou o presidente da comissão, lorde David Lipsey, que exigiu a adoção de critérios rígidos para assegurar padrões mais elevados de confiabilidade. 

E ameaçou propor medidas restritivas à divulgação de pesquisas nas semanas que antecedem as eleições, como se pretendeu fazer durante uma das minirreformas eleitorais no Brasil, caso não se verifiquem progressos.


A culpa pelos resultados absurdos? Ora, o eleitor é o culpado…


As causas dos desacertos apontadas pelos dois relatórios são bem conhecidas. Elas incluem falhas nas metodologias usadas na definição de amostragens; na elaboração dos questionários, que podem enviesar resultados induzindo diferentes respostas por parte dos entrevistados; e na tabulação dos dados. 

Mas também se responsabilizou a mídia por divulgar pesquisas sem as necessárias ressalvas e contextualizações. No caso dos Estados Unidos e do Reino Unido, foram excluídas as hipóteses de manipulação fraudulenta. 

Num país como o Brasil, onde se adultera até combustível e leite, contudo, talvez seja recomendável não descartar essa possibilidade.

Nas explicações apresentadas pelos institutos de pesquisa brasileiros após cada rodada de erros, sempre se acaba jogando a culpa no eleitor. O qual estaria cada vez mais volátil, especialmente por influência das mídias sociais, e portanto propenso a mudar de voto à última hora. 

Ou que deturparia as pesquisas involuntariamente, devido a uma variável ligada à psicologia comportamental — a tese de que os entrevistados nem sempre revelam sua real intenção de voto, preferindo indicar com frequência o nome do candidato considerado mais socialmente aceitável ou “politicamente correto”.

Também não há dúvidas sobre como pesquisas inexatas podem deturpar resultados eleitorais — ao estimular o chamado “voto útil”, por exemplo, ou favorecer os candidatos mais conhecidos, cujos nomes aparecem repetidamente nas pesquisas, induzindo respostas e impedindo a renovação política. 

É ilustrativo, nesse sentido, o fato de institutos de pesquisa terem incluído nos questionários de intenção de voto, durante um bom período da campanha presidencial de 2018, o nome de um candidato que estava legalmente impedido de concorrer e condenado à prisão, o ex-presidente Lula.


A mídia mantém distância do debate. Afinal, faz parte da indústria das pesquisas


O que não se descobriu ainda é como vencer as resistências à adoção de legislação que obrigue de fato as empresas a melhorar a qualidade de seu trabalho e a atuar com mais transparência, sujeitando-se  a auditorias e fiscalização, visto que elas são beneficiadas, ainda que indiretamente, por verbas públicas. 

E detêm tamanho poder de impactar os rumos do país. Uma das razões talvez seja o fato de a mídia não ter interesse, ou isenção, para pôr o problema em foco com o destaque que ele exige. Afinal, ela é parte dessa indústria, como proprietária de empresas de pesquisa, ou se abastece delas para alimentar manchetes que ajudam a atrair audiências.

Ou seja, apesar de todo o vigor exibido em campanhas contra as chamadas fake news, a ponto de se aplaudirem medidas de censura, infelizmente ainda não se vê por aqui nenhuma mobilização para combater as fake polls. Caberá aos eleitores ficarem alertas para não ser manipulados inadvertidamente.


Selma Santa Cruz foi editora e correspondente internacional do jornal O Estado de S. Paulo e da  revista Veja, na França e nos Estados Unidos, antes de se dedicar à comunicação corporativa como sócia-diretora da TV1, grupo de agências especializadas em marketing digital, conteúdo, live marketing e relações públicas. É mestre em comunicação pela USP e estudante permanente da História.

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