sexta-feira, 4 de setembro de 2020

"A bolsa de valores e a nova revolução do capitalismo", por Dagomir Marquezi

Os aplicativos financeiros e o desempenho da B3, com quase 1 milhão de novos investidores desde o início da pandemia, são sinais de um círculo virtuoso para a economia


“Na sexta-feira 3 de julho, a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, a de maior movimento no país por sua tradição e proximidade das autoridades financeiras, abriu seu pregão, como de hábito, às 10 horas da manhã. […] O cenário: uma mesa larga ao centro, onde são registradas as operações; no alto, quadros-negros onde funcionários vão escrevendo suas operações.”

Mais de 50 anos nos separam dessa matéria de capa da revista Veja de 22 de julho de 1970. A capa trazia o Tio Patinhas em close, um cifrão em cada olho arregalado, dizendo: “Você aí, vamos comigo à bolsa?”. E pensando: “Ela está melhorando”.

Capa da revista Veja 

Tirando o fato de que pregões continuam abrindo às 10 horas, tudo o mais mudou neste meio século. A principal bolsa não é mais a do Rio de Janeiro (que na prática foi incorporada à de São Paulo), não vivemos mais sob regime militar, e os quadros-negros provavelmente foram substituídos por monitores 4K. Quanto ao tio Patinhas… por onde andará?

Segundo o personagem, a bolsa de 1970 estava “melhorando”. Pois as mudanças econômicas que estamos vivendo cinco décadas depois são muito mais profundas.


Pix. É bom acostumar-se com essas três letrinhas, pois logo estaremos fazendo uso delas


Algumas razões para essa grande transformação foram explicadas pelo economista Ubiratan Jorge Iorio aqui mesmo na Revista Oeste. A primeira: “A nova taxa de juros real está agora na casa de -0,71% ao ano. Sim, uma taxa de juros negativa”. O que significa que a poupança, que já não rendia grande coisa, começou a dar prejuízo ao investidor. Outras aplicações de renda fixa, como os CDBs, estão tendo um rendimento abaixo de medíocre.

A segunda grande mudança apontada por Iorio é a irreversível onda das fintechs (empresas de “tecnologia financeira”). São startups extremamente ágeis que oferecem alguns dos serviços dos grandes bancos, cobram pouco pelo que fazem e resolvem tudo por meio de aplicativos para smartphones. Você abre uma conta em dez minutos deitado no sofá enquanto espera a pizza. São bancos sem agências, com pessoal enxuto e zero burocracia. Uma dessas fintechs, o Nubank, segundo sua cofundadora Cristina Junqueira, está ganhando 40 mil novos clientes por dia no Brasil.

Duas novidades vão acelerar ainda mais essas mudanças no sistema bancário. Uma é o Pix. É bom acostumar-se com essas três letrinhas, pois logo estaremos todos fazendo uso delas. Com o Pix, poderemos transferir valores usando o e-mail ou o celular ou sacar dinheiro só com o número do CPF. Em qualquer hora de qualquer dia, sem senha, sem cartão nem caixa eletrônico.

Essa simplicidade (que exige um reforço no sistema de segurança) já é sucesso no Reino Unido e na Índia. Promoverá a inclusão de milhões no sistema bancário. Afinal, como lembrou Marcelo Mussi, da consultoria Strategy, cerca de 50 milhões de brasileiros não têm acesso aos bancos, ou esse acesso é precário. São 50 milhões de clientes em potencial.


Open banking — o cliente no controle do próprio dinheiro, não mais os bancões


Outra novidade em processo de implantação: o open banking. Com ele, poderemos coordenar diversas contas bancárias e de investimento num único aplicativo. Se um banco está esfolando você com juros e taxas, outras instituições (devidamente autorizadas pelo cliente) podem comparecer automaticamente com opções mais vantajosas. O sistema bancário fica mais transparente. O cliente assume o controle de seu dinheiro.

Estamos vivendo a era “dos 4 D”, apresentada pelo presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, num evento sobre open banking: “democratizar, digitalizar, desburocratizar, desmonetizar”. Para Campos Neto, “esse ciclo de tecnologia que cria serviços, empregos, renda e consumo veio para ficar”.

Os seis megabancos brasileiros estão obviamente preocupados com essa perda de poder e tentam se adaptar aos novos tempos. A revista Época Negócios ilustrou o tamanho dessa concentração de mercado: “Em março deste ano, o total de empréstimos concedidos a pessoas e a empresas era de R$ 4,015 trilhões. Essa montanha de dinheiro havia sido emprestada por 1.287 bancos e cooperativas de crédito. No entanto, 78,2% desse total concentram-se em seis bancos: Itaú, Bradesco, Banco do Brasil, Santander, Caixa Econômica e BNDES. Se o total de crédito do Brasil fossem apenas R$ 5, 1.281 bancos e cooperativas seriam responsáveis por apenas R$1,09”.

Mas o aspecto mais vistoso e excitante de toda essa mudança é o fato de “pessoas comuns”, órfãs das aplicações em renda fixa, estarem investindo com tanto apetite em ações. Os preços das cotações que eram anotadas numa lousa em 1970 agora chegam de graça, em tempo real, ao smartphone de qualquer um.


A B3 ganhou investidores mais jovens e menos endinheirados


Segundo matéria de Renato Jakitas para O Estado de S. Paulo, “após uma década estacionada em torno dos 500 mil investidores pessoa física, a bolsa brasileira rompeu a casa de 1 milhão de CPFs em julho do ano passado. Desde então, o número não parou de crescer e agora, durante o confinamento imposto pelo novo coronavírus, o movimento ganhou ainda mais força: apenas de março a julho, 900 mil novas contas foram abertas, levando o total para quase 3 milhões de investidores”.

O índice da B3 (que mede a saúde do mercado de ações) iniciou 2020 com 118 mil pontos. Os mais otimistas já estimavam 140 mil pontos até 2021. Mas veio a covid-19, e os investidores estrangeiros caíram fora. O índice desabou para 63 mil em março.

E então, em plena crise, os novos investidores brasileiros começaram a aparecer. A participação deles subiu de 17% para 21%. O mercado ficou mais sólido, menos especulativo e dependente do investimento externo. E o Índice Bovespa voltou ao patamar dos 100 mil desde meados de julho.

A B3 (a bolsa oficial do Brasil) realizou um estudo mais aprofundado sobre essa nova onda de investidores. Encontrou uma realidade surpreendente.

  • Durante sete anos, de 2011 a 2017, o número de CPFs aplicando na Bolsa ficou parado nos 600 mil. A partir de 2018, deu um salto e chegou a 2 milhões em abril de 2020.
  • Dos 223 mil novos investidores em março de 2020, 30% fez o primeiro investimento com menos de R$ 500.
  • 48% deles comprou cinco ou mais ações de diferentes empresas.
  • O número de investidores entre 25 e 39 anos subiu de 28% (em 2017) para 49%.
  • As mulheres ainda estão em minoria, mas já representam um quarto dos investidores.
  • O número de “pequenos” investidores (com até R$ 10 mil de carteira) subiu de 44% (em 2011) para 54%.

O maior grupo (22%) dos novos investidores pesquisados está concentrado no Estado de São Paulo. O que parece um problema pode ser uma grande oportunidade. Esse crescimento da bolsa pode se espalhar e se solidificar pelo Brasil, via internet. Gente do país inteiro poderá virar investidor da bolsa ou de outros investimentos de risco.


Mais gente investindo em ações significa mais fiscais de empresas e instituições


E se for outra bolha?

Henrique Bredda, da Alaska Asset Management, acredita que a B3 está “superdepreciada”. Ou seja, com capacidade real para crescer muito. Walter Maciel, CEO da AZ Quest, diz que a quantidade de empresas listadas na bolsa é “muito pequena para o tamanho do país”, o que indica que pode se expandir sem necessariamente explodir.

Gilson Finkelsztain, CEO da B3, garantiu (em matéria para o Estado de S. Paulo) que existem fundamentos que sustentam a alta da bolsa “mesmo com forte recessão da economia real. Não vejo os preços de ativos no Brasil refletindo uma irracionalidade”. Paulo Bilyk, CEO da Rio Bravo Investimentos, é mais pessimista. “Todos os fundamentos da economia dizem que não haverá crescimento acelerado em nada. E que nem sequer haverá muito consumo a partir da virada deste ano”.

Sim. Pode ser que as coisas deem errado. Acontece. Mas, se essa perspectiva negativa fosse tão presente, não haveria uma lista de oito a dez empresas querendo se lançar na B3 antes que 2020 acabe. O que está ocorrendo é algo maior do que um cálculo de ganho ou perda a curto prazo. Estamos falando de uma sólida e positiva mudança de mentalidade.

Luiz Nunes, sócio-fundador da Forpus Capital, demonstra como as coisas começam a se transformar de maneira mais ampla: “Ao entrar na bolsa, o investidor fica exposto a todas as intempéries e vetores que mexem muito com seu dinheiro. Então, ele passa a querer saber o que está acontecendo no campo político, na economia e no mundo como um todo. Passamos a ter fiscais em todos os lugares do país. Isso cria um círculo virtuoso para melhorar não só as práticas das empresas como as práticas das instituições.”

Quem compra ações da empresa X torna-se sócio dela, mesmo que numa participação muito pequena. O investidor vai querer que a empresa X lucre mais para dividir esse crescimento com ele. Para que a empresa cresça, terá de funcionar bem, com gente capacitada, competente, ética e honesta. Notícias sobre a empresa X tomam outra dimensão.

Ela vai precisar também de um ambiente saudável para crescer, sem burocracia, sem impostos extorsivos, sem insegurança jurídica, sem gargalos de distribuição. E de um governo que não seja corrupto nem atrapalhe a economia. Um investidor tende a ficar mais atento à vida real do país e do mundo. Ele votará de maneira mais responsável e racional nas eleições seguintes. Afinal, “sua” empresa está em jogo.


Todos nós temos de ser empresários de uma forma ou outra. E ser empresário significa viver fora de bolhas de proteção

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Quer mais novidade? A Comissão de Valores Mobiliários liberou a partir deste mês que qualquer investidor tenha acesso aos BDR. BDR quer dizer Brazilian Depositary Receipts (ou “recibos de depósitos brasileiros”). Estavam limitados a instituições financeiras e cidadãos com mais de R$ 1 milhão em investimentos. Agora qualquer pessoa física pode entrar nesse mercado.

BDRs são ativos que representam ações de empresas no exterior. Você não se torna sócio das empresas. Mas esses ativos “espelham” o preço das ações lá fora. Funcionam como fundos de investimento, sujeitos às variações do câmbio.

Isso quer dizer que você, eu e os cidadãos de Chumpiguaia, Dom Pedrito e Caraicarai agora podemos ser investidores (indiretos) de companhias como Apple, Microsoft, Mastercard, Amazon, Disney, Pfizer… São mais de 500 empresas estrangeiras negociáveis na bolsa brasileira. Campeã de valorização de BDR, a Tesla cresceu vertiginosos 822% nos últimos doze meses. Quem comprou por R$ 221 uma “cota” da TSLA34 em agosto de 2019 está feliz em saber que hoje ela vale cerca de R$ 3 mil.

Já imaginou milhões de brasileiros “comuns”, nas padarias e ônibus, de olho nos gráficos das Bolsas de São Paulo e Nova York em seu celular? É uma cena que parecia impossível num país com forte preconceito anticapitalista como o nosso. Nossa imagem “oficial” de empresário ainda é o tio Patinhas — um egoísta incapaz de ajudar a própria família, feliz somente quando nada numa piscina cheia de moedas. Quase todos os vilões de novela são empresários.

Essa visão esquemática e ideológica está desmoronando. Afinal, nos dias de hoje quase todos nós temos de ser empresários de uma forma ou outra. E ser empresário significa viver fora de bolhas de proteção, enfrentando a realidade no dia a dia, com suas fortes emoções. Seja vendendo pipoca num carrinho ou investindo numa startup de milhões. Entramos no risco. Estamos amadurecendo.

Cinquenta anos depois, o Tio Patinhas está aposentado, tratando sua compulsão psicótica por moedas douradas numa era de bitcoins. O Pato Donald transferiu parte de sua poupança para a Bolsa de Valores de Patópolis e está se dando muito bem. Huguinho, Luisinho e Zezinho formaram uma fintech e estão a caminho de superar a riqueza do velho Patinhas.

Leia também o artigo “Os juros baixos e os bancões”, de Ubiratan Jorge Iorio.


Dagomir Marquezi, nascido em São Paulo, é escritor, roteirista e jornalista. Autor dos livros Auika!, Alma Digital, História Aberta, 50 Pilotos — A Arte de se Iniciar uma Série e Open Channel D: The Man from U.N.C.L.E. Affair. Prêmio Funarte de dramaturgia com a peça Intervalo. Ligado especialmente a temas relacionados com cultura pop, direito dos animais e tecnologia.

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