sexta-feira, 4 de setembro de 2020

"Universidades sob o comando de tolos militantes", por Bruno Garschagen

Como resultado, gerações de alunos treinadas a aceitar e a reproduzir insanidades políticas


Somente de uns anos para cá sociedades de diferentes países se deram conta de que departamentos de humanas das universidades foram convertidos em centros ideológicos de formação de militância. E é precisamente em instituições de grande prestígio e influência mundo afora que são criadas, desenvolvidas e legitimadas as mais desatinadas e perversas teorias, termos e palavras de ordem. Teoria crítica, pós-modernismo, teoria do privilégio, estudos de gênero, política identitária, justiça social, apropriação cultural, são alguns exemplos de teses ideológicas elaboradas ou referendadas por certas celebridades intelectuais, e até mesmo por professores que despontaram para o anonimato, ao contrário de seus equívocos.

O drama, contudo, não é novo. Nos Estados Unidos no fim dos anos 1980 e início dos 1990, livros como The Closing of the American Mind (Simon & Schuster, 1987), de Allan Bloom, e Radicais nas Universidades (Peixoto Neto, 2010), de Roger Kimball, já haviam mostrado as causas e consequências da atuação ideológica de chefes de departamentos e professores em universidades de elite. Nessas instituições de ensino são formadas sucessivas gerações de jovens revolucionários cujo propósito de vida é dividir, destruir, conquistar espaços de poder e uniformizar o pensamento e a política.

De lá para cá o problema se agravou, e vários foram os livros dedicados ao tema. O mais recente, publicado no mês passado, tem um título bastante apropriado e um conteúdo revelador: Cynical Theories  How Activist Scholarship Made Everything about Race, Gender, and Identity — and Why This Harms Everybody (Pitchstone Publishing, 2020).

Seus autores, Helen Pluckrose e James Lindsay, que são de esquerda (liberals no contexto norte-americano), dissecam o pós-modernismo e seus efeitos negativos no ensino, nos estudos acadêmicos, e sua influência sobre os movimentos progressistas. Eles consideram o pós-modernismo uma das ideologias mais intolerantes e autoritárias que o mundo enfrenta desde o colapso do comunismo. Outro bom livro sobre o assunto é Explicando o Pós-modernismo: Ceticismo e Socialismo  de Rousseau a Foucault (Callis Editora, 2011), de Stephen R. C. Hicks.


Avaliadores de artigos acadêmicos estão mais preocupados com a defesa da agenda ideológica


Em Cynical Theories, Helen e James explicam a teoria, a linguagem e o que está ideologicamente por trás de áreas de estudo como teoria pós-colonial, teoria queer, teoria crítica da raça, feminismos e estudos de gênero, justiça social. Alguns autores famosos citados criticamente no livro também são analisados em Tolos, Fraudes e Militantes (Editora Record, 2015), de Roger Scruton.

A conclusão de Cynical Theories é, entretanto, problemática — algo que os próprios autores reconhecem em parte. Eles defendem como alternativa à ideologia da justiça social um liberalismo (no sentido norte-americano, esquerdismo e não liberalismo clássico) sem política identitária, como se o pós-modernismo e a política identitária não tivessem emergido em razão desse liberalismo.

Um parêntese: influenciados pela famosa história do professor Alan Sokal, entre 2017 e 2018 Helen, James e Peter Boghossian escreveram com pseudônimo e submeteram a revistas acadêmicas de prestígio um total de 20 artigos repletos de jargões pós-modernistas e conclusões sem sentido. O objetivo era mostrar que, nos campos de estudos de gênero, queer e obesidade, os avaliadores estão menos preocupados com um trabalho sério do que com a defesa da agenda ideológica. Quando a história toda veio a público, em outubro de 2018, sete artigos haviam sido aprovados para publicação, outros sete estavam na fase de peer review e apenas seis foram rejeitados.

É possível que o problema oriundo da ideologização de determinados departamentos de humanas esteja relacionado à perda da essência da universidade. É do filósofo Michael Oakeshott, no artigo “The idea of a university”, a tese segundo a qual “a universidade não é um instrumento para alcançar um propósito particular ou produzir um resultado específico; é uma forma de atividade humana”.


Carpeaux afirmava a história das universidades como a história espiritual das nações


Para Oakeshott, as atividades desenvolvidas nas universidades, como a contemplação intelectual, são fins em si mesmas. A função da universidade não é, portanto, treinar o aluno para ser capaz de executar tarefas profissionais nem ser uma etapa para conquistas materiais. Ambas são possíveis, mas não a sua finalidade.

A defesa dessa ideia de universidade (entendida de forma restrita às humanidades) é compartilhada por outros distintos autores, como o cardeal inglês Newmann em seu conhecido texto “The idea of a university” e o austro-brasileiro Otto Maria Carpeaux em seu ensaio “A ideia de Universidade e as ideias das classes médias”.

Newmann e Carpeaux defendiam a universidade não por seu aspecto utilitário, de formação de homens práticos, mas como instrumento de transmissão de conhecimento e de valores. Carpeaux afirmava a história das universidades como a história espiritual das nações.

Ao descrever o ambiente universitário espanhol em 1939, o escritor Javier Marías lamentou que o ambiente totalitário na Europa e a guerra civil na Espanha tenham resultado em controle estatal direto e expurgos. “Consumou-se a mais absoluta falta de respeito pela Universidade: destituições, depurações que deixavam em condição de precariedade os sobreviventes; nomeações políticas, supressão de toda a liberdade de cátedra, eliminação de tudo o que havia sido criador no pensamento espanhol desde o começo do século”. Segundo Marías, “tudo isso — com mínimas exceções individuais — foi aceito, tolerado ou exaltado pelos próprios universitários”.


Ambientes de “domínio e servidão, de difusão de ‘teorias’ grotescas”


A mesma falta de autorrespeito se deu na Alemanha, segundo o escritor.  “Desde 1933, o nacional-socialismo triunfante fez o que quis com a esplêndida Universidade alemã, e esta não reagiu ou foi de encontro ao Poder abusivo, revelando assim que no fundo não era tão esplêndida quanto havia parecido, quanto havia sido efetivamente durante muito tempo”.

Juntos, professores universitários e intelectuais do partido, lamentou Marías, manipularam a universidade e a converteram “num instrumento de domínio e servidão, de difusão de ‘teorias’ grotescas, envoltas no prestígio difuso da ‘ciência’”.

A politização cada vez maior das universidades europeias, explicou o escritor, foi uma das tantas consequências negativas do totalitarismo vigente no continente em parte dos anos 1930 e 1940: “A Universidade deixou de respeitar-se a si mesma”.

Com um ambiente político e social bem diferente daquele que marcou sinistramente o século 20, na Europa e em outros países ocidentais as universidades padecem de mal similar. Os revolucionários de esquerda que mandam nos departamentos e nos centros acadêmicos politizaram a universidade e acreditam piamente que a instituição é instrumento para alcançar um propósito particular e produzir um resultado específico, qual seja o de padronizar a mentalidade dos alunos com a ideologia que defendem, formar militância e obter determinados resultados sociais, políticos, econômicos.

Graças à universidade, convertida em instrumento ideológico, gerações de alunos foram treinadas a aceitar e a reproduzir insanidades políticas. Também foi nela que se criaram e legitimaram intelectualmente termos e slogans políticos que foram dócil e acriticamente abrigados pela imprensa, constituída por muitos jornalistas moldados nesse tipo de universidade.

Qualquer tolice dita por um professor ou aluno é reproduzida pelos meios de comunicação como se fosse exata, adequada e verdadeira. Essa sujeição ideológica é estendida a qualquer indivíduo ou movimento que defenda uma agenda comum. É por essa razão que qualquer manifestação pública da esquerda, seja pacífica ou violenta, conta com a cobertura adesista e entusiasmada de repórteres e colunistas de jornais, revistas e emissoras de TV.


É necessário remover da direção revolucionários, ideólogos e militantes


Em Criação do Ocidente (É Realizações, 2016), o historiador Cristopher Dawson diz que a origem das universidades da Europa são as escolas catedrais no século 11, que eram orientadas por parâmetros intelectuais, morais, éticos, espirituais. Esse legado foi deixado de lado e suplantado pela ideologia, pela política.

De fato, nem todos os departamentos de todas as universidades são centros de formação de militância. Provavelmente, a maioria dos professores e pesquisadores realiza um trabalho sério em instituições de várias partes do mundo, inclusive no Brasil. Sei disso por experiência própria e pelo relato de amigos e colegas que atuam no mundo acadêmico. Achar o contrário é faltar com a verdade, assim como é estupidez atacar a existência da universidade e cair num anti-intelectualismo tolo.

Também de nada adianta só reclamar sem nada fazer, sem nada propor e sem assumir responsabilidades. Creio que parte da solução para o problema atual passa por dois aspectos: o primeiro, ocupar de forma qualificada os espaços na academia a partir do ingresso de professores intelectualmente preparados para lecionar, realizar pesquisas a sério nos vários campos de atuação — e não apenas no âmbito das humanidades — e dirigir/coordenar os departamentos. Assim será possível, de dentro da universidade, produzir com rigor e denunciar as fraudes intelectuais e a militância.

O segundo é tirar dos revolucionários, ideólogos e militantes o poder que eles conquistaram nas universidades e assim devolver à instituição o espírito que deveria orientá-la: “a consagração do Conhecimento”, como afirmou Charles Homer Haskins no livro A Ascensão das Universidades (Livraria Danúbio Editora, 2015). Porque, dado o controle que eles exercem, o estudante pode ser prejudicado e o professor/pesquisador pode ter sua vida profissional inviabilizada ou destruída

Não é fácil nem rápido, mas factível alterar o panorama atual no universo acadêmico. É desejável que essa responsabilidade seja assumida pelos vocacionados com apoio da sociedade. Só assim a universidade voltará a respeitar-se a si mesma e a ser respeitada.


Bruno Garschagen é cientista políticomestre e doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa) e autor dos best-sellers Pare de Acreditar no Governo e Direitos Máximos, Deveres Mínimos (Editora Record).

Revista Oeste