“Um caos organizado.” É assim que o fotógrafo holandês Chas Gerretsen resume o que viu durante os meses de 1976 e 1977 que passou no set de filmagem de “Apocalypse Now”, de Francis Ford Coppola.
Organização: “Os helicópteros militares eram alugados do exército filipino, mas era difícil cumprir o contrato quando eles tinham que combater uma rebelião muçulmana todas as noites no sul do arquipélago. A estrela americana era pintada em cima do brasão filipino, que seria repintado de novo de noite. Um dia, onze helicópteros foram contratados e pagos, mas apenas cinco apareceram.”
Caos: “Alguém decidiu criar uma atmosfera de loucura profunda em volta do templo do coronel Kurtz [Marlon Brando]. Corpos pendurados e sangue não era o bastante. ‘Precisamos de pedaços humanos’. Em vez de usarem bonecos, alguém foi até o necrotério e pagou os caras. Depois que alguns profissionais reclamaram sobre o cheiro e ratos, a história saiu no jornal local. A polícia apareceu e logo depois um carro funerário chegou para levar os pedaços.”
Contratado como fotógrafo do set, capturando cenas à frente e de trás das câmeras, Chas tinha a experiência ter estado na guerra do Vietnã e Camboja entre 1968 e 1972 e no golpe militar do Chile em 1973. Mas é claro que o inferno pensado por Coppola nas Filipinas, um conjunto de ilhas ao sul do Vietnã, era pior do que a realidade.
Parte dessa história (a dos pedaços de corpos ele contou à Folha) está no documentário “Dutch Angle”, que entra no ar amanhã no serviço de streaming Belas Artes À La Carte. Junto, chega a mais nova versão de “Apocalypse Now”, chamada “Final Cut”, que estreou no ano passado em Cannes. É inédito no Brasil, com exceção de cinco sessões no Belas Artes Drive In em junho, com ingressos esgotados em poucas horas.
O pacote do Belas Artes é completado por “O Apocalipse de um Cineasta”, um dos melhores documentários sobre cinema já feitos, baseado em cenas filmadas por Eleanor, mulher de Coppola, nas Filipinas, e nas fitas das conversas que tinha com o marido durante o processo, que ela gravou sem que ele soubesse.
Em “Dutch Angle”, Chas Gerretsen comenta com certa ênfase que ele não era bem-vindo ao set. “Não é que fosse desagradável, mas eu não colaborava com o filme diretamente, apenas fazia fotos para serem usadas depois para publicidade e imprensa. Eu não era um deles”, conta o holandês, respondendo a entrevista da Folha em um barco ancorado em um porto na Martinica, no Caribe.
Questionado quem foi o ator mais difícil de trabalhar, não falou de Martin Sheen ou de Dennis Hopper. O fotógrafo sofreu, como Coppola, com a superestrela . “Ele chegou ‘levemente’ acima do peso e bastante animado”, recorda-se Chas.
“Francis me avisou: ‘Marlon não quer ser fotografado. Uma vez, nas filmagens de ‘O Poderoso Chefão’, ele arrancou a câmera de uma velha senhora e a arrebentou no chão.’ Pouco depois ele visitou o set e veio até cada um de nós dizendo, sem olhar no rosto, enquanto dava as mãos, ‘Oi, meu nome é Marlon Brando’. Dois minutos depois, ele estava de volta, dando as mãos e se apresentando mais uma vez.”
“Ele tinha trazido com ele uma garota chinesa magrela de 19 anos, ninguém sabia direito quem era. ‘Oi, sou Stefani’, ela me disse. ‘Marlon gosta de você. Você está autorizado a fotografá-lo. Mas peça permissão antes.’ No fim da tarde eu o vi sentado debaixo de uma árvore com Francis e sua mulher, que carregava a câmera com a qual filmava seu documentário. Aguardei que a conversa amainasse, fui até eles e disse ‘Com licença, sr. Brando, será que eu posso...’ Ele me deu uma olhada. ‘Não.’ Depois, Francis me disse que ele também não tinha autorizado Eleanor a filmá-lo.”
Segundo Gerretsen, as coisas não melhoraram após esse primeiro dia. Brando havia sido contratado, por três semanas, pelo inacreditável cachê de US$ 1 milhão por semana (US$ 4,6 milhões nos valores de hoje, ou R$ 25 milhões; R$ 75 milhões no total)
“No dia seguinte, ele não trabalhou porque estava com dor no dedão do pé. No outro, com dor no estômago. E no terceiro, ele e Francis se sentaram para reescrever suas falas. Ele não gostou do pijamão preto de algodão comum que o personagem usaria. Ele havia visto um outro com algodão egípcio em Hong Kong. Imediatamente alguém foi mandado para Hong Kong para comprá-lo.”
Durante as filmagens, “Brando não decorou nenhum fala porque, segundo ele, ‘isso tiraria a espontaneidade’. Então, Francis mandou fazerem cartazes com as falas, para serem levantados por trás das câmeras. Mesmo assim, ele não as lia. Além disso, aceitava muito pouco as orientações de Coppola e, de vez em quando, saía intempestivamente do set.”
Quanto ao fotógrafo vivido por Dennis Hopper na parte final do filme, Chas conta que Coppola nunca confirmou, mas que acredita que ele próprio foi a inspiração para o personagem. De fato, no documentário de Eleanor Coppola, vemos que o personagem não existia no roteiro inicial.
“Eu sugeri a ele num almoço a colocar um fotojornalista. Dois dias depois, ele me chamou e perguntou como um jornalista na guerra deveria se vestir.”
“Então, Dennis Hopper chegou. Coppola o vestia e me chamava, pedindo minha opinião. ‘Ele parece um turista, com apenas uma câmera no pescoço. Precisa ter três ou quatro câmeras’, eu disse.
No dia seguinte, um produtor me falou ‘Precisamos de suas câmeras para o Dennis.’ ‘Sem problemas, você me compra novas?’ ‘É claro.’ ‘Beleza, mas eu teria que ir a Hong Kong comprar câmeras e lentes para mim.’ ‘Apenas traga as notas.’ Alguns dias depois, voei para lá, comprei todo o equipamento e voltei no domingo, pronto para as filmagens da semana seguinte.”
Realmente, caos organizado é um resumo à altura das aventuras de Chas nas Filipinas.
Ivan Finotti, Folha de São Paulo