O país merece crédito por sua imunidade à histeria em relação à doença e por manter sua abordagem aberta e civilizada diante da indignação internacional
ASuécia, pelo menos vista de fora, costumava simbolizar moderação, praticidade e equidade (vamos pensar no Abba, na Ikea e na social-democracia). Isto é, até o novo coronavírus atacar. Agora é mais provável ouvir o país sendo descrito como “imprudente” e “perigoso”. Seu governo é acusado da crueldade de sujeitar seus cidadãos a um “experimento” darwinista mortal. Se a Suécia um dia pôde ter sido aclamada como referência para a esquerda social-democrata, suas políticas aparentemente assassinas hoje fazem dela um “modelo” de extrema direita. A mídia internacional agora maldiz esse país, antes considerado inofensivo, com o tipo de linguagem em geral usado para ditaduras como a Arábia Saudita, e não para a Escandinávia.
Claro, como todo mundo sabe a esta altura, o motivo pelo qual a Suécia entrou para a lista negra foi a recusa inabalável em implementar um lockdown completo. A vida de maneira nenhuma está normal na Suécia. Reuniões de mais de 50 pessoas estão proibidas, assim como visitas às casas de repouso para idosos. Existem aqueles que são incentivados a trabalhar de casa. O uso de transporte público diminuiu drasticamente. Mas, em comparação com o resto da Europa, bares, cafés, restaurantes e negócios se mantiveram abertos. As escolas continuaram abertas para todos os estudantes com menos de 16 anos. Existem orientações sobre distanciamento social e higiene, mas não são impostas pelos agentes de segurança. Os críticos da Suécia a acusam de tentar uma estratégia de imunização de rebanho — ainda que isso seja negado pelas autoridades.
Então, como funcionou para a Suécia? Originalmente, o objetivo era “achatar a curva” — isto é, desacelerar a propagação do vírus o suficiente para evitar a sobrecarga da capacidade hospitalar. Esse cenário de horror foi a principal justificativa para a suspensão das liberdades civis e a devastação das nossas economias. Mas na Suécia isso não aconteceu.
Um ponto fora da curva na abordagem, mas não em termos de todas as consequências
No entanto, desde que os lockdowns começaram, as balizas foram movidas. Agora, os bloqueios são divulgados como meio de reduzir os casos e as mortes no total. E, mesmo nesses novos termos desonestos, os resultados suecos são bem medianos: seja quanto a números absolutos ou per capita, a Suécia fica abaixo de Reino Unido, França, Itália e Espanha — que optaram pelo lockdown.
Um estudo da Universidade de Oxford que acompanha o rigor das reações dos governos pelo mundo revela que isso teve pouco impacto nas mortes. E descobriu que, em termos de excesso geral de mortalidade (que inclui todas as mortes não causadas pela covid-19), a Suécia teve mais perdas do que teria em outra situação — afinal de contas, há uma pandemia —, mas em proporção semelhante às da Suíça, que optou pelo lockdown. Em contraste, Reino Unido, Espanha e Holanda, que também fizeram lockdown, tiveram índices de mortandade excessiva extremamente altos, em comparação com condições usuais.
A Suécia sem dúvida cometeu falhas. As autoridades pediram desculpas à população e, em razão da pressão, até informaram que teriam tomado outras medidas se fosse possível retroagir o calendário. Pessoas em casas de repouso ou que recebem atendimento em casa representam três quartos do total de mortes por covid-19 do país. “Fracassamos em proteger nossos idosos”, admitiu a ministra da Saúde sueca Lena Hallengren. Há também um número desproporcional preocupantemente alto de minorias étnicas entre os casos de covid-19 no país, o que em parte se deve às falhas do governo em comunicar os perigos às comunidades de imigrantes.
No geral, a Suécia pode ser um ponto fora da curva em sua abordagem, mas não um ponto fora da curva em termos de todas as consequências. E isso é intolerável para os defensores linha-dura do lockdown. Como resultado, qualquer notícia que pareça negativa é sequestrada como evidência de que a Suécia fracassou terrivelmente — e, por implicação, que deveríamos pensar duas vezes antes de relaxar nossas próprias restrições, apesar de seus efeitos cada vez maiores.
Atacar a Bélgica, com recorde na taxa de letalidade per capita, traria perguntas desconfortáveis sobre o lockdown
Por exemplo, um artigo do jornal britânico The Telegraph afirmou em sua manchete que a Suécia tinha a mais alta taxa de mortes por milhão de habitantes. Ele foi animadamente compartilhado e retuitado. O texto em si incluía o importante qualificador “nos últimos sete dias”, em vez de durante a pandemia. Depois, a manchete foi modificada para deixar isso claro. Exatamente por que seria útil comparar as mortes per capita em uma semana no fim de maio quando as mortes semanais na Europa estão chegando a níveis pré-pandemia não se sabe ao certo. A honraria duvidosa de maior taxa de letalidade per capita fica com a Bélgica, que teve um lockdown rigoroso, introduzido mais ou menos na mesma época que a França. Atacar a Bélgica pela maneira como lidou com o vírus traria perguntas desconfortáveis sobre a eficácia da política de lockdown. Então, em vez disso, a Suécia foi atacada.
Mesmo assim, esse factoide foi suficiente para que Nick Cohen, do jornal The Guardian, também britânico, declarasse a política sueca “uma idiotice mortal”. Talvez figuras como Cohen logo estarão pedindo intervenção humanitária para derrubar o bárbaro regime social-democrata. A diatribe inclui outra matéria com más notícias que caiu nas graças dos detratores da Suécia. Um estudo do fim de abril descobriu que apenas 7,3% dos moradores de Estocolmo tinham desenvolvido anticorpos para a covid-19. Isso deveria significar que os suecos estavam caindo como moscas, mas não tinham desenvolvido a imunidade de rebanho que poderia protegê-los no futuro. A modelagem da Agência de Saúde Pública para semanas mais recentes colocou esse número em pouco mais de 20%. Você pode adivinhar qual das estimativas chegou às manchetes.
Comentadores também se deliciam com o fato de a economia sueca ter sofrido grande impacto, mesmo sem tantas medidas restritivas. Isso supostamente demonstra que as preocupações com a economia, a pobreza e o desemprego estão equivocadas e que, seja qual for a dor causada pelo lockdown, ele é um mal necessário. Um artigo no jornal The Critic, que compara a política sueca com “viva com liberdade e morra”, aponta para a previsão da Comissão Europeia de um colapso de 6,1% no PIB. Mas, de novo, os resultados da Suécia estão na média. A previsão é uma queda de 7,4% na União Europeia como um todo. Alguns países com lockdown estão antecipando níveis impressionantes de sofrimento econômico: espera-se que o PIB da Itália tenha retração de 9,5%, e o da Espanha, 9,4%. Isso também custará vidas.
As notícias que chegam da Noruega e da Dinamarca não são boas para os defensores do lockdown
Um truque de mágica que disfarça a medianidade fundamental da Suécia é que seus críticos tendem a compará-la com outros países escandinavos, e nunca com a Europa ou com o mundo como um todo. Noruega, Dinamarca e Finlândia de fato tiveram resultados muito melhores ao lidar com seus surtos do que a Suécia a esta altura. Mas comparar países “similares” é um exercício que raramente se repete em outras circunstâncias — vejamos, por exemplo, as tentativas absurdas de comparar a Nova Zelândia com o Reino Unido (para começar, a Nova Zelândia tem mais ovelhas do que pessoas).
Além disso, as notícias que chegam da Noruega e da Dinamarca não são boas para os defensores ferrenhos do lockdown. Líderes na área de saúde na Noruega descobriram recentemente que o chamado número R (a velocidade com que o vírus se espalha) ficou abaixo de 1 e a transmissão estava em queda antes que o bloqueio fosse instituído. Isso levou a chefe da agência de saúde pública da Noruega a concluir que “talvez pudéssemos ter obtido os mesmos resultados e evitado alguns dos impactos infelizes sem o lockdown, mantendo a abertura, mas com medidas de controle de infecção”.
Enquanto isso, na Dinamarca, especialistas de saúde pública afirmam que a primeira-ministra “abusou dos conselhos de saúde” ao dizer à população que o lockdown era recomendado pelas “autoridades” (o que foi interpretado pela maioria como a Autoridade de Saúde e a Agência de Doenças Infecciosas dinamarquesas). Na verdade, a autoridade de saúde da Dinamarca recomendou bem poucas das medidas draconianas que acabaram sendo implementadas. De acordo com a publicação Local, em fevereiro, Søren Brostrøm, diretor da Autoridade, “assinou uma recomendação que excluía especificamente medidas que interferissem na liberdade dos dinamarqueses, exceto em circunstâncias extremas”. Sem dúvida, conforme os custos do lockdown se acumulam e o coronavírus em si vai sumindo de vista, poucas pessoas vão querer ser reconhecidas como responsáveis pelo desastre.
O tempo dirá se os suecos vão desenvolver imunização de rebanho para a covid-19 antes que o resto de nós, ou antes que uma cura milagrosa chegue. Mas a Suécia merece crédito por sua imunidade à histeria em relação à doença, e por manter sua abordagem aberta e civilizada diante da indignação internacional.
Revista Oeste