sexta-feira, 19 de junho de 2020

"As torcidas organizadas expulsaram a democracia das arquibancadas", por Augusto Nunes

Democracia é torcer pelo Palmeiras no meio da torcida do Corinthians — ou o contrário — e voltar para casa vivo e sem lesões corporais

Apandemia de coronavírus não teve forças para cancelar o jogo entre o Flamengo e o Bangu.

Mas conseguiu manter o veto a aglomerações, e as arquibancadas desertas confirmaram que futebol sem torcedores sempre terá cara de treino.

O pesadelo sanitário logo será reduzido a uma lembrança aflitiva, mas os estádios não ficarão livres de ameaças, perigos e proibições decorrentes da intolerância epidêmica das torcidas organizadas.

Em São Paulo, por decisão judicial, disputas entre os grandes clubes só são vistas por devotos do mandante.

A torcida única foi a forma escolhida pelo Ministério Público e pela polícia para evitar os violentos confrontos que começaram nas arquibancadas, estenderam-se às imediações das arenas e agora aterrorizam passageiros do metrô.
No começo deste junho, chefes das tribos paulistas garantiram em manifestos e atos públicos que se converteram em irredutíveis defensores da democracia.

Se é assim, têm de aprender que o regime que agora apreciam pressupõe o convívio dos contrários.

Precisam ensinar aos chefiados que cânticos e berros de incentivo devem substituir socos e pontapés, e que não faz sentido tratar como crime hediondo a preferência por times rivais.

Jogos com torcida única lembram ditadura de partido único.

Democracia é torcer pelo Palmeiras no meio da torcida do Corinthians — ou o contrário — e voltar para casa vivo e sem lesões corporais.
Em memória dos tempos em que as arquibancadas não tinham donos, e em homenagem ao 62º aniversário da conquista da Copa da Suécia, reedito a crônica que conta como um menino de 8 anos viveu aquele mágico 27 de junho de 1958.

Três sorvetes e uma Taça

 O estranho dia em que fui campeão do mundo


“Você não vai ouvir o jogo do Brasil? Pensei que gostasse de futebol”, estranhou minha mãe quando avisei que estava de saída para a sorveteria do Abbud.

Ela vai ouvir o jogo contra a Suécia?, também estranhei ao vê-la de pé a um metro do rádio, com a caçula no colo e querendo saber dos dois filhos sentados no sofá como era mesmo o nome do juiz.

Pensei que dona Biloca não gostasse de futebol.

Eu gostava.

Aos 8 anos, ia me entendendo melhor com a bola, meu pai já avisara que eu era torcedor do Palmeiras e tinha decorado antes da estreia contra a Áustria os nomes dos 22 craques da Seleção.

Gostava mais de jogar do que ouvir, mas vinha acompanhando as batalhas da pátria em chuteiras na Guerra da Suécia pelo rádio do tamanho de um armário que pertencia à minha avó, uma imigrante italiana que engrossara a torcida brasileira ao descobrir que o elenco incluía um Bellini, um Mazzola, um De Sordi e um Dino Sani.
Eu sabia que o time canarinho estava fazendo bonito, que Garrincha destroçara o futebol científico da comunistada russa e que, naquele domingo, o duelo em Estocolmo não se limitaria a decidir a Copa: o resultado também decidiria se o Brasil tinha jeito.

O que eu não sabia é que seriam declarados traidores da nação em perigo, e sumariamente condenados à execração perpétua, sem direito a recursos encaminhados a instâncias superiores ou tribunais internacionais, todos os brasileiros — incluídos os recém-nascidos e os mortos do mês, os índios da Amazônia e os estrangeiros nacionalizados, as normalistas oferecidas e as carmelitas descalças, os inimputáveis em geral e os doidos de hospício em particular — que no dia 29 de junho de 1958 pensassem em qualquer outra coisa além da conquista da Copa.

Disso eu não sabia.

E gostava muito de sorvete.
Acordei pensando não nos dribles de Garrincha ou num gol de Pelé, mas num sorvete de limão.

“Volto antes da metade do primeiro tempo”, comecei a explicar quando fui aparteado por um dos dois irmãos.

“Não dá, são quinze quarteirões. Fala logo que não gosta de futebol”, provocou o inimigo íntimo.

Acusei-o de ter passado na casa de um amigo a tarde do duríssimo combate contra o País de Gales.

“Só que ouvindo o rádio, não tomando sorvete”, ele mandou no ângulo.

“Esse moleque é meio bobo”, resumiu o pensamento geral meu irmão mais velho.

Estava planejando um carrinho por trás quando meu pai entrou em casa e os dois times entraram em campo.
Aproveitei a distração dos adversários, fingi que recuava para proteger a retaguarda e invadi o quarto.

Precisava de uma camisa.

O dia estava frio.

O inverno ia chegando ao meio, e ainda havia no sertão paulista outras estações além do verão que acabaria eternizado pelo oceano de cana que engoliu primeiro as plantações de café, depois os laranjais e enfim, quando já não restavam campos a afogar, até os casarões das fazendas, as tulhas, os canteiros, as hortas e os quintais.

Vesti uma camiseta verde, sem distintivo nem número nas costas.

Continuei descalço.

E com aquele calção detestável que todos os menores de 10 anos usavam, feito pela mãe e tias com a amputação, milímetros acima do joelho, das pernas de alguma calça de adulto derrotada pelo tempo.
Se me tratassem com mais cortesia, talvez tivesse deixado o sorvete para depois do jogo.

Sob pressão é que não fico em casa mesmo, cismei. E não vou trazer sorvete para essa gente.

Nem para a avó, radicalizei no momento em que o juiz, um francês chamado Messiê Guiguê conforme berrou a voz no rádio, apitou o começo da partida e da caminhada rumo à sorveteria.

E então estranhei a paisagem: não havia ninguém na rua da minha casa.

Nem na Rua General Glicério nem na Marechal Deodoro, fiquei intrigado no segundo minuto de jogo.

Nem em nenhuma outra rua de Taquaritinga, espantei-me aos 4 minutos do primeiro tempo, quando cheguei ao cruzamento da General Glicério com a Duque de Caxias junto com o gol da Suécia marcado na calçada da casa do médico da minha família e transmitido pelo locutor, quase em surdina, pelo rádio do sobrado de um vereador que não gostava do meu pai.
Haviam sumido das calçadas e das varandas os quase 10 mil habitantes, e todos os carros estavam nas garagens ou estacionados na rua.

O único sinal de vida era a voz do locutor.

Achei aquilo muito estranho e desconfiei que seria mais sensato desistir.

Caminhei com Didi, ambos lentamente, ele em direção ao meio de campo, com a cabeça erguida, a bola na mão esquerda e tranquilizando o time, eu de volta para casa, cabisbaixo, de mãos abanando e tentando preparar-me para a capitulação humilhante que só não foi consumada porque, aos 9 minutos, Vavá empatou na frente do portão do dentista.
Todo mundo estava ouvindo o jogo, confirmou a universalização da voz poderosa que se sobrepunha ao unânime berreiro patriótico, a mesmíssima voz vinda de todos os pontos cardeais, do céu e da terra, multiplicada por dezenas, centenas, milhares de aparelhos ligados na mesma estação, atravessando as janelas que as famílias haviam escancarado para que até os jardins, os pomares e os quintais testemunhassem, sem perderem um único centésimo de segundo, o triunfo da Seleção incomparável.

E então os ouvidos atentos como os olhos do goleiro Gilmar captaram o recado sonoro: era só seguir o caminho das casas.
Deslumbrado, compreendi que poderia tomar sorvete e ouvir o jogo, e depois desconcertar a caipirada lá em casa com o mistério da minha ubiquidade, porque nenhum parente sabia o que eu acabara de saber e não contaria nem sob tortura. Montei o novo plano com a serenidade de um Feola.

O roteiro redesenhado passaria ao largo de clubes, repartições públicas, associações, bares ou botequins, estabelecimentos comerciais, escolas — tudo o que pudesse estar fechado ou desprovido de aparelhos de rádio.

Subi outra vez pela General Glicério, virei à esquerda na Duque de Caxias com a elegância sutil de Nilton Santos, arranquei rente à lateral direita como Djalma Santos, parei feito Orlando diante do adversário na esquina com a Campos Salles, virei o jogo para a direita como Zito e corri para o abraço quando Vavá desempatou debaixo da segunda janela do advogado que discursava nos comícios do meu pai.
OBrasil caminhava rumo ao vestiário e eu driblava o terreno da Força e Luz para virar à esquerda na esquina com a Visconde do Rio Branco.

O jogo estava no intervalo quando enxerguei a fachada da sorveteria.

Hoje é meu dia, avisaram as portas abertas.

Além de quatro homens sentados na mesa perto do rádio, que nem me olharam, lá estava um dos donos, que ouviu o pedido sem deixar de ouvir o comentarista.

Antes de terminar o palito de limão, descobri que estava sintonizado na Cadeia Verde-Amarela, liderada pela Bandeirantes, e que o primeiro tempo fora transmitido por Pedro Luiz.

Edson Leite narraria o segundo, soube no palito seguinte, outra vez de limão.
Igualmente soberba, a voz menos veloz e mais grave que a outra avisou: “Estão começando os 45 minutos que decidirão a sorte do Brasil na Copa do Mundo”.

Pedi uma casquinha de abacaxi, só para variar, levantei-me certo de que a Taça já era nossa e fiquei com cara de campeão no momento do golaço de Pelé ao lado da casa do tesoureiro da prefeitura, no fim do primeiro cruzamento do caminho de volta.

Zagallo encaçapou de bico perto da jabuticabeira da minha professora do jardim de infância.

Nem me abalei com o segundo da Suécia, marcado em frente do casarão com fama de assombrado — em clamoroso impedimento, soube por Edson Leite.
Resolvi ganhar alguns minutos para entrar em casa no apito final, mas nem pensei em administrar a posse de bola, isso só existiria no futuro, não naquele junho em que o negócio era jogar pra frente, ou ficar driblando meio mundo, e por isso resolvi aproveitar a ausência de espectadores para reproduzir os melhores lances imaginários.

Saí pela direita como Garrincha na esquina, saí de novo pela direita na esquina seguinte, percebi que voltara ao ponto de partida ao fim da quarta arrancada, sempre pela direita, e achei mais lógico avançar sem pressa como Didi.
Ultrapassei o Chevrolet rabo de peixe do doutor Luizinho Barbosa, encobri com um chapéu o Mercury preto do prefeito, escorei a bola de cabeça junto com Pelé no portão de casa, comemorei o quinto gol com a mão na maçaneta e entrei na sala gritando “Brasil!!!”.

“Chegou o único do mundo que não ouviu a vitória da Seleção”, debochou o primogênito.

“Esse é tão bobo que não gosta de futebol”, pegou-me de novo no tornozelo o outro irmão.

Revidei com elogios à qualidade do sorvete e à voz dos dois locutores, a narração detalhada dos cinco gols da pátria em chuteiras, um sorriso de campeão do mundo e aquele brilho no olhar só concedido a quem, ouvindo o rádio, viu como jogavam os heróis de 1958.

Revista Oeste