sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

"O Irlandês", por Luciano Pires

O Irlandês

Scorcese, De Niro, Pesci e Pacino - Divulgação



Assisti O Irlandês, o novo filme de Martin Scorcese, na Netflix. Três horas e meia de cinema, que assisti de uma tacada só. E acho que nunca fiz isso fora de um cinema. Foram as maratonas de séries que me deram essa “habilidade”, rarararara.
Vamos lá, sem spoilers.
É um baita filme. Conta uma história que vai do final da II Guerra, passa pelos anos 70 e chega até os dias de hoje.
Eu fui obrigado a repetir os primeiros 45 segundos do filme, só para apreciar a transição de uma imagem de um filme antigo, gravado em 16 ou 8 mm, para o cinema digital atual, quando uma câmera percorre as dependências de um asilo, onde encontraremos Frank Sheeran, já em avançada idade, interpretado por Robert De Niro, que nos conduzirá pela trama.
O Irlandês é a história de uma vida, não uma história de um acontecimento ou período, como nos clássicos anteriores de Scorcese Os Bons Companheiros ou Casino. Por isso o ritmo é mais lento e os recursos que o diretor e o roteirista utilizam são muito diferentes daqueles aos quais estamos acostumados a ver nos filmes atuais, feitos para segurar atenção de quem quer novidades a cada três minutos.
O plot: De Niro, como Frank Sheeran, entra no submundo da máfia pelas mãos de Russel Buffalino, interpretado pelo grande Joe Pesci. Russel apresenta Frank para Jimmy Hoffa, interpretado por Al Pacino. Daí se desenvolve uma história de amizade que levará a um final surpreendente. E mais não digo.
Jimmy Hoffa é um personagem real, um chefe sindical poderosíssimo que desapareceu sem deixar vestígios em 1975. O filme conta o que teria acontecido com ele.
Assistimos a uma trama que a cada momento cruza com grandes acontecimentos históricos. A eleição de Kennedy e seu assassinato. A invasão da baía dos Porcos em Cuba, a crise dos mísseis russos. É muito interessante ver como os autores amarram a história com cada um desses acontecimentos, fazendo com que os personagens sejam não só espectadores, mas protagonistas dos fatos.
Comecei a assistir o filme esperando uma história da Máfia e encontrei a história de um ser humano, que aprende a usar a brutalidade como ferramenta para crescer num ambiente agressivo, e que ao final da vida começa um processo de busca de redenção. As cenas de De Niro sofrendo as consequências da velhice, das limitações de locomoção ao confinamento a uma cadeira de rodas, são impactantes e, de certa maneira, o que mais me marcou no filme. Coisa de idade.
E é impossível não imaginar que esse filme é um exercício do próprio Scorcese, um home velho, olhando para trás e revendo sua vida. Tem de tudo que Scorcese sempre usou em seus filmes: violência, valores cristãos, laços familiares, tradições, traições, a igreja … e a cultura italiana. Tá tudo lá.
Como contação de história, o roteiro de Steven Zaillian é brilhante. E como cinematografia, temos uma aula de cinema. Saborosa, completa. Até mesmo ao congelar os personagens e colocar um letreiro indicando quem eram e que fim levaram. Me fez ir para o Google mais de uma vez…
Sobre os atores, o trio principal é para ser assistido de joelhos, mesmo que De Niro pareça estar interpretando… De Niro e suas caretas. É sempre um show. Joe Pesci, que havia sido exuberante em Os Bons Companheiros, pela histrionice, brutalidade e loucura do personagem, aqui é o mesmo exuberante, mas pela forma contida. Fiquei esperando que ele explodisse a qualquer momento… Al Pacino está ótimo! Também esperei um “Say hello to my little firend!” rararararara. Até mesmo Harvey Keitel, que faz pouco mais que uma ponta, é uma presença marcante.
O que de melhor o cinema pode nos dar, está ali. Inclusive nos efeitos especiais.
É fácil maquiar um ator para que ele pareça mais velho, desde que você não seja o maquiador que fez Guy Pearce ter 100 anos em Prometeus, mas maquiar um ator para parecer mais jovem é uma encrenca. Por isso, normalmente se contrata autores jovens, como o próprio De Niro interpretando o personagem de Marlon Brando na juventude em O Poderoso Chefão II.
Em O Irlandês, o diretor optou por rejuvenescer Joe Pesci, De Niro e Pacino, com efeitos especiais. Deu certo, mas não engana… Fiquei o tempo todo incomodado com um “tem algo estranho” em cada cena. Dá pra sacar que existe algo ali. Não compromete o filme, e de certa forma é fascinante, mostrando que a tecnologia está quase lá.
A trilha sonora… bem, é um Scorcese. E eu pulei da cadeira logo no começo, ao ouvir Delicado, do brasileiríssimo Waldir Azevedo, numa gravação de Percy Faith, que fez sucesso em 1952…
Diferente dos outros filmes de Scorcese, a música abriu espaço para momentos de silêncio e contemplação. A substituição do vigor da juventude e dos rocks, pela quietude da reflexão. Em muitos momentos me peguei quieto, observando o personagem de De Niro, sem qualquer música de suspense ao fundo. É como se o diretor, que na juventude nos mostrou cenas de ação e vigor, agora esteja revelando a idade e diminuindo o ritmo ao contar sua história.
Se em Coringa você vê a vida transformando um homem pacato num monstro, agora você vê quem um dia foi um monstro, envelhecendo para se tornar um homem angustiado em busca de perdão por seu passado.
Olha, eu me senti em alguns momentos assistindo os filmes anteriores de Scorcese, homenageando outros filmes de Máfia (até me pareceu que numa cena de restaurante, a música usa os primeiros acordes da melodia imortal de O Poderoso Chefão). Me lembrei muito de Era Uma Vez Na América, de Sergio Leone.
A cena final é impactante pela solidão, a noção de que “é o fim”, que representa.
E o pavor de que o mesmo possa se repetir comigo.
O Irlandês é um PUTA filme, para ser degustado. Se você conhece cinema, vai se lambuzar.
Mas se você pensa que cinema é “Vingadores”, vai achar chato e cansativo.
Azar seu.

Café Brasil