sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

"Carnaval", por Miranda Sá

“O povo toma pileques de ilusão com futebol e carnaval. São estas as suas duas fontes de sonho” (Carlos Drummond de Andrade)
Embora com outros nomes, o Carnaval ocorre desde a mais remota antiguidade, como uma festa de liberação por um prazo concedido e limitado dos impulsos individuais e grupais em desacordo com as proibições políticas e religiosas.
Conhecido como entrudo, folguedo, folia, mascarada, orgia e troça, o verbete Carnaval, dicionarizado, é um substantivo masculino de origem latina, “carnis levale” que significa dizer “adeus à carne”.
Todas as civilizações antigas tiveram o seu carnaval; no Ocidente a herança prevalecente é greco-romana. Na Grécia antiga registram-se as festas dionisíacas em homenagem a Dionísio – deus mitológico, patrono do vinho -; e na Roma dos césares eram as chamadas bacanais, dedicadas ao deus da embriaguez, Baco.
As diversões apresentavam o caráter comum da subversão dos costumes e dos valores sociais, com escravos se vestindo de nobres, os marginais de sacerdotes e sempre os homens se vestindo de mulher e vice-versa.
A Igreja Católica se apropriou desses costumes arraigados entre os pagãos para controlar os prazeres mundanos dos fiéis, cujos desejos extravasados deveriam ser relacionados ao jejum da Quaresma. Assim, sob a influência vaticana o carnaval tornou-se uma “festa profana” consentida…
O carnaval chegou ao Brasil no período colonial copiando as festas europeias, principalmente as que ocorriam na Itália e na França no século XVI; aqui se mesclou com a influência indígena, logo no início, e depois com a chegada dos escravos africanos adotando o ritmo cadenciado da batucada. Em Pernambuco registram-se todas essas demonstrações originais.
Hoje a comercialização das festividades momescas (de “Rei Momo” personagem da mitologia grega) ultrapassou os três dias de liberdade para os brincantes que deveriam preceder a quarta-feira de cinzas. Na Bahia dura mais de um mês…
Fui um carnavalesco convicto. Hoje, dos folguedos restam pedacinhos coloridos de saudade como registrou poeticamente David Nasser na marchinha “Confete”… Eram gostosamente ingênuas as fantasias das meninas, bailarina, bruxa, colombina, havaiana, holandesa, índia, jardineira, noiva, odalisca… Os rapazes iam de arlequim, diabo, marinheiro, palhaço, pirata, presidiário, rei zulu, toureiro…
A mistura do sagrado e o profano favoreceu a caricatura da política, a crítica dos costumes e transformação temporária de gênero. Assim, o Carnaval – banditismo à parte -, é só alegria. Eis que saem das tocas as hienas do “politicamente correto” na sua prática inquisitorial das proibições…
Eis que a hipocrisia começou por Belo Horizonte, com a sua Câmara de Vereadores trazendo o avesso dos preconceitos, numa cartilha que expressa um “Carnis Levale
Prohibitorum”, sugerindo que homem não se vista de mulher, não se caracterize como índio, não se maquie de preto…
É a oficialização dos estereótipos numa festa de inversões… O que condenarão nas marchinhas clássicas que falam de “Favela” e não de Comunidade? E aquela maravilha de Lamartine Babo, “O teu cabelo não nega”? E o “Allah-La-ô” de Haroldo Barbosa e Nássara? E o “China Pau” de João de Barro?
Isto consideraria a reprovação dos grandes compositores da mais alta qualidade que os brasileiros ainda lembram e cantam. A culpa atingiria
Ari Barroso, Benedito Lacerda, Evaldo Rui, Fernando Lobo, Haroldo Lobo, Herivelto Martins, Noel Rosa e Wilson Batista, entre outros.
Considero criminoso censurar “A História da Maçã”, “Palhaço”, “Falta um zero no meu ordenado”, “Pedreiro Waldemar”, “Nega Maluca” e “Zé Marmita”. Estão condenadas já, a hilária “Cabelereira do Zezé” e a admirável composição de Ataulfo e Mário Lago, “Amélia”.
Eu consideraria espetacular que estes citados ícones das marchinhas carnavalescas ressuscitassem, e compusessem em conjunto, “A Marcha da Liberdade”!