sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

"Fora de controle: não o coronavírus, mas reações a ele", por Vilma Gryzinski

Como os livros, o cinema, o streaming, as redes sociais, as profecias religiosas e a nossa própria psique vivem nos preparando para um acontecimento apocalíptico, a disseminação global do coronavírus parece até perfeitamente previsível.
Quem já não viu esse filme antes?
A raridade do evento, a imprevisibilidade depois explicada com obviedades, como na teoria do cisnes negro, está na combinação de fatores que o cercam.
Primeiro, uma exuberância tão irracional das bolsas que transformou em esporte mundial dos especialistas apostar quando, quanto e por que iam cair.
Agora que está acontecendo, parece óbvio: uma pandemia vinda da China, claro. Foram dois mil pontos do Dow Jones incinerados em dois dias, um pavor.
Segundo, a campanha presidencial americana e a instabilidade que cria, com a perspectiva de que se confrontem um candidato socialista, admirador de Fidel Castro, e Donald Trump.
O ódio despertado pelo presidente nos antitrumpistas é tanto que demorou muito pouco para que encontrassem o culpado pelo coronavírus.
Adivinhem quem.
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Trump fez o que qualquer outro presidente faria: tentou acalmar a nação e colocou uma missão impossível nas costas do vice, Mike Pence – para isso existem os vices. E procurou passar segurança.
À moda Trump, claro. “Existe uma boa probabilidade de que você não vá morrer”. “Nós definitivamente vamos todos morrer”, ironizou Don Lemon, um dos comediantes que fazem programas parecidos como noticiários jornalísticos.
A piada captura o tom do momento: exagerado, fora do controle, dominado pelo pânico e regido pelo espírito de manada.
Exagerar pelo lado da precaução é bom, mas quem não se apavora quando a Arábia Saudita fecha Meca e Medina, as cidades santas da religião muçulmana, Israel aconselha quem ninguém faça as viagens ao exterior, a escola onde estudam os filhos de William e Kate suspende atividades (motivo: algumas crianças viajaram à Itália no feriadão) e ficam vazios os restaurantes de Milão onde era difícil encontrar reserva para pagar 150 euros por uma pasta e uns enfeitizinhos?
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São espantosas a velocidade e a quantidade de conhecimentos científicos acumulados hoje, principalmente depois dos estudos feitos sobre as síndromes respiratórias Sars e Mers, “primas” do novo corona, mas os humanos continuam programados para ter um medo irracional dos inimigos invisíveis.
Cientistas chineses sequenciaram o genoma do coronavírus em menos de um mês. O primeiro caso da estranha “pneumonia de Wujan” foi relatado em 8 de dezembro, em 10 de janeiro o bicho estava mapeado.
O sequenciamento do DNA do vírus Sars, com seus 29 727 nucleotídeos, demorou três vezes mais. É claro que computadores cada vez mais rápidos fazem o trabalho render.
O mitológico – e complicado – pesquisador J. Craig Venter propôs em 1990 um método para acelerar o sequenciamento dos genomas. Em 1995, foi completado o genoma do primeiro organismo vivo, a bactéria Haemophilus influenza.
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Seis mil pessoas morriam por semana em Londres no auge da peste de 1666, a pandemia que disseminou o uso de um “uniforme” médico consistente num avental longo, chapéu e máscara em formato de bico de pássaro para afastar os miasmas dados como origem da doença devastadora.
A coisa, evidentemente, não tinha o menor efeito sobre a devastadora bactéria Yersinia pestis transmitida por pulgas de ratos.
Mas dava um medo danado.
O medo apaga as fronteiras entre as precauções necessárias e as exageradas.
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Que governante quer ser acusado de minimizar o corona? Que organização vai promover um evento com possibilidade, ainda que remotíssima, de que alguém saia infectado.
Como em todas as situações de alta tensão, o humor dá um alívio. E nem precisa mencionar onde a maioria da população, de todos os países, gostaria de ser o novo vírus se espalhar.
Pois é, a classe política não é exatamente popular.
Como num caso de realidade aumentada, o corona está fazendo estragos entre a elite dirigente do Irã. O vice-ministro da Saúde testou positivo para o vírus.
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Agora, foi a vice-presidente Masoumeh Ebtekar. De certa maneira, ela já era conhecida além fronteiras. Foi líder e porta-voz do movimento estudantil que invadiu a embaixada americana logo depois da vitória da revolução dos aiatolás.
Ganhou, na época, o nada gentil apelido de Screaming Mary, ou Maria do Berro.
Ela participou de uma coletiva com altas autoridades. Estava sentada tão perto quando possível, pelas regras de convívio público entre homens e mulheres, de gente muito importante.
Isso sim seria um cisne negro daqueles: uma epidemia que derruba um governo inteiro.
Como o índice de letalidade é baixo, não adiante nem torcer.

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