sábado, 29 de fevereiro de 2020

"Ambivalência", por Miranda Sá

“Escrevo sobre isolamento e ternura, a perturbadora ambivalência nossa, frivolidade e covardia, às vezes a graça e o riso. ” (Lya Luft)
Na sua nomenclatura, a Psicologia registra “Ambivalência” como a igualdade das tendências antagônicas, termo criado pelo psicanalista Bleuler; e no conceito popular o caráter daquilo que representa dois aspectos e dois valores.
Lembrei-me do vocábulo para responder uma mensagem política comparativa a mim dirigida no Twitter, que respondi como “A culpa é ambivalente: dos bons, competentes e honestos que fogem da política, e do eleitorado que elege o que há de pior na política.  São raras a exceções…”.
Na Matemática há um axioma que reza: “os extremos se tocam no infinito”, o que com vistas à política e à religião, dá razão a Bleuler.
Houve uma época na minha vida que estudei as religiões com avidez, não somente as monoteístas vigentes nas sociedades de maior avanço civilizatório como nas consideradas primitivas.
É discutível o caso do sincretismo religioso, quando as religiões “de Estado” se apropriam de velhos cultos chamados pagãos. Recordo, por exemplo, a adoção por várias seitas judaicas, como a dos essênios, do culto do sol pelo mitracismo. As festas do solstício de Inverno (25 de dezembro), também foram adotadas posteriormente pelo cristianismo.
Na Roma antiga, o imperador Heliogábalo trouxe de Cartago a pedra negra adorada em nome da Deusa do Céu, e bem mais tarde os muçulmanos passaram a adorar na grande Mesquita de Meca uma pedra negra, anteriormente branca, que teria escurecida por causa dos pecados da humanidade.
Este culto foi recuperado pelo profeta Maomé de clãs árabes do deserto em tempos remotos, assim como os cristãos adicionaram à sua crença o “sabat” – o dia do descanso dos judeus -, nos domingos.
Assim, temos na religião a noção de ambivalência. Socialmente tivemos inda agora o Carnaval, velha festividade pagã, entrando no calendário da Semana Santa. Vem da mais remota Antiguidade, como as Sacéias babilônicas e no Egito, na Grécia Antiga, cultuando o deus Dionísio, e em Roma com as bacanais.
Desde então já havia as brincadeiras com sátira social e zombaria das autoridades; as máscaras, batalhas simuladas com frutas e a inversão geral das regras, com homens vestidos de mulher e mulheres vestidas de homens…
No Brasil passou a ser celebrado ao atravessar o Atlântico com os portugueses, desde 1.500, e mais tarde, por ambivalência somando-se às influências musicais Indígena e Africana que introduziram ritmo e a consequente cadência na dança.
Na Colônia a Igreja Católica impôs-lhe preceitos religiosos dando-lhe um significado vinculado à Páscoa – a Terça-Feira Gorda é 47 dias antes do domingo de Páscoa, levando os crentes a um período de reflexão e jejum após os exageros.
Vieram depois as ascendências políticas, primeiro com a oficialização das festividades, que, por contradição, garantia mais liberdade do que hoje na Ditadura Vargas. E também uma quase apropriação da política, com a oposição aproveitando-se dos folguedos para a crítica, ou pelo oportunismo de candidatos às eleições.
E agora temos a hilária condição dos políticos manterem as máscaras carnavalescas durante todo o ano, cobrindo-se de promessas reluzentes com vidrilhos e lantejoulas no período eleitoral…
A ambivalência tem este sentido da duplicidade, muitas vezes contraditórias, irônicas e perturbadoras, que nos ajuda a abandonar o pessimismo e encontrar a alegria que rejuvenesce carnavalescamente…