Vamos decifrá-lo...
Vamos decifrar o letreiro posto à entrada de 2022: “Lasciate ogni speranza, voi che entrate” (abandonai toda esperança, vós, que entrais).
Peraí, acho que erramos de porta. Ou já vimos este letreiro em algum lugar? Se já o vimos alhures, não poderia estar aqui de novo. O ano-novo ou ano-bom é sempre um ano novo em folha. Ou melhor, em folhinhas. A cada dia arrancaremos uma. Aliás, junto com alguns cabelos, como sempre.
Eis que me enganei. Esse que vi é o letreiro do Inferno na Divina Comédia, a obra imortal do escritor italiano Dante Alighieri. Alguém deslocou a placa, ia levando para outro lugar, pôs à entrada do ano-novo.
Que nos espera em 2022? Para começar, estaremos vivendo no 100º ano do rádio e no 200º ano da Independência do Brasil. Nada mal: para começar, temos um centenário e um bicentenário memoráveis, daquelas coisas que buscam mais o muito que nos une, deixando para trás o pouco que nos separa.
Se não fizéssemos assim, como torcer para uma seleção brasileira que não convoca os nossos jogadores preferidos, dos clubes para os quais torcemos? Flamengo, Corinthians, Internacional, Palmeiras e outros jazem esquecidos quando a seleção entra em campo. Outro valor mais alto se alevanta. O futebol tem também essa magia, além de todas as outras: a arte de nos unir em torno de um objetivo: ganhar a Copa do Mundo.
Os leitores haverão de lembrar-se de que em 1972 foi o sesquicentenário, o presidente era o general Emílio Garrastazu Médici e ainda ecoava uma efeméride recente celebrada em conhecida canção, ainda de muito sucesso no rádio, com letra de Luiz Gustavo e música de Raul de Souza: “Noventa milhões em ação/ Pra frente, Brasil, no meu coração/ Todos juntos, vamos pra frente Brasil/ Salve a seleção!”.
Os versos eram bonitos e a população brasileira era aquela mesma: menos da metade da de hoje e o mesmo território para todos viverem. Foi necessária, porém, uma pequena retificação. O compositor escrevera originalmente “setenta milhões em ação”, mas o censo demográfico mostrou que havia outros vinte milhões de brasileiros a acrescentar.
A seleção brasileira estava por cima da carne-seca depois do fracasso de 1966, quando perdemos para nós mesmos, na conhecida desorganização que tinha tomado conta do futebol. Mas em 1970, como que para preparar os festejos do sesquicentenário, o Brasil tinha ficado tricampeão do mundo no México. Foi grande a emoção popular.
Do futebol a alegria tinha se espalhado por todo o país. Na memória do povo ficou mais fácil de guardar cada detalhe porque em seguida, acompanhando o rádio, veio a televisão, não mais em preto e branco, como tinha sido na Copa do Mundo, mas em cores desde a Festa da Uva, tradicional evento nacional transmitido de Caxias do Sul (RS) para todo o Brasil.
Os versos eram cantados de cor, com imagens transmitidas em cores no sesquicentenário, e passaram a ser entoados também em outros festejos, embora alguns espíritos de porco insistissem que deveríamos ter torcido contra o Brasil porque a vitória tinha ajudado a ditadura militar, que, segundo eles, era muito pior do que aquela que eles queriam implantar com a luta armada. Mas o povo continuava cantando: “De repente é aquela corrente pra frente,/ Parece que todo o Brasil deu a mão!/ Todos ligados na mesma emoção,/ Tudo é um só coração! Todos juntos, vamos, pra frente, Brasil!”.
Os antigos gregos consideravam a esperança um dos males do mundo, tanto que ela está na caixa de Pandora. Mas por que a esperança seria um mal? Porque poderia enganá-los a respeito do futuro.
O Destino é mestre. A vitória nos ensina menos do que a derrota. “Magister dixit”, traduzido até por quem só sabe latim de ouvido, “o mestre disse”, é antigo brocardo para exibir saberes por quem, em geral, não os tem, mas este é o caso de invocar o provérbio, pois o Brasil tem aprendido pouco com suas derrotas e menos ainda com suas vitórias.
Em latim vulgar e português desjuridicado, magister dixit equivale a “manda quem pode e obedece quem tem juízo”, ainda que em outras expressões nacionais o espanto seja engarrafado em outro frasco, pois reza o bordão popular que de cabeça de juiz, urna de votação, bunda de nenê e barriga de mulher grávida nunca se sabe o que vem.
Depois do ultrassom, a última surpresa foi dissipada: o exame sempre dirá se vai ser menino ou menina. Mas, como no Brasil nada é definitivo, tudo é provisório, talvez seja reincluída.
O ano de 2022 poderá ser representado por um bebê, como sempre? E neste caso será menino ou menina? Se o desvario linguístico minoritário predominar, talvez não seja menino nem menina, mas “menine”.
Todos sabem que se o bebê tiver torneirinha será menino e se não tiver será menina. Sabem, mas talvez não possam dizer, do contrário poderão ser atingidos por anátemas, blasfêmias, impropérios, ofensas, xingamentos e outras formas de insulto. A turma sem bandeira grande, só com bandeirolas, quer impor “menine” a todos os outros.
O escritor português Herberto Hélder, falecido aos 74 anos, em 2015, é autor de um conto antológico intitulado Teorema. Ali aparece o rei português Dom Pedro I, o Cru (isto é, o cruel, dado seu modo justiceiro de proceder), monarca celebrado no episódio de Inês de Castro em Os Lusíadas em versos como estes: “De noite em doces sonhos que mentiam,/ De dia em pensamentos que voavam/ E tudo quanto enfim cuidava, e quanto via,/ Eram tudo memórias de alegria”.
Teorema trata do cumprimento da sentença em praça pública contra os assassinos de Inês de Castro, aquela que depois de morta foi rainha, que está na origem da expressão “agora Inês é morta”. Morto o rei seu pai, o sucessor a faz rainha e pune com crueldade os que deram morte à sua amada.
Eis amostra desta preciosidade da literatura de nossa língua, a portuguesa: “Gosto deste rei louco, inocente e brutal. (…) Somos um povo bárbaro e puro, e é uma grande responsabilidade estar à frente de um povo assim”. Pois é, em 2022 elegeremos alguém para estar à frente do povo brasileiro.
Feliz Ano Novo para todos nós! (fim)
Revista Oeste